Solos: diploma “não vai cumprir os objetivos”, alerta o CNADS

Procedimento simplificado de conversão de solo rústico em urbano é, para o Conselho Nacional de Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (CNADS), um “penso rápido” que não resolve o problema do acesso à habitação. Na atual versão, o diploma cria conflitos jurídicos “inevitáveis” por contrariar políticas nacionais de ordenamento do território. Alterações ao Decreto-Lei são discutidas amanhã no Parlamento

por Cátia Vilaça

João Joanaz de Melo não tem dúvidas: a alteração ao Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial vai criar conflitos jurídicos “inevitáveis”, mas também “necessários”, alerta o dirigente do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) e membro do CNADS. 

Em conferência de imprensa a um dia da discussão parlamentar sobre o diploma, o CNADS voltou a sublinhar os problemas de um diploma que contraria a política nacional de ordenamento do território e colide com compromissos europeus de salvaguarda de valores ambientais, para além de não cumprir o objetivo com que foi criado, ou seja, baixar o preço da habitação, podendo mesmo agravá-lo (relembre-se que o diploma introduz o conceito de “habitação de valor moderado”, definindo essa habitação como “toda aquela em que o preço por m2 de área bruta privativa não exceda o valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o território nacional ou, se superior, 125% do valor da mediana de preço de venda por m2 de habitação para o concelho da localização do imóvel, até ao máximo de 225% do valor da mediana nacional.”). 70 % da habitação a construir nos terrenos reclassificados tem de ser pública ou de valor moderado, mas, como lembrou João Ferrão, coordenador do parecer do CNADS, não existem quotas para habitação pública, pelo que no limite esses 70 % podem ser de valor moderado. Nos municípios onde o preço de mercado ainda não excede os limites à mediana definidos no diploma, passa a ser possível aumentar o preço. Os restantes 30 % serão regidos por preço livre. A possibilidade de o diploma não produzir os efeitos desejados nos preços foi até reconhecida ontem pelo deputado do PSD João Vale e Azevedo em sede de audição ao ministro das Infraestruturas e Habitação, ainda que ambos - deputado e ministro - se tenham mostrado confiantes nos efeitos da lei da oferta e da procura.

Para além dos efeitos imprevisíveis no preço da habitação, João Joanaz de Melo chama ainda a atenção para os custos do alargamento da malha urbana, lembrando que o custo da área urbana dispersa (considerando a infraestrutura de água, saneamento, etc.) é duas a sete vezes superior ao da área consolidada.

João Ferrão lamentou ainda a ausência do Ministério do Ambiente nos proponentes do diploma, assinado pelo Ministro da Coesão, Castro Almeida, e pelo das Infraestruturas e Habitação, Miguel Pinto Luz, além do primeiro-ministro, mostrando-se convicto de que o envolvimento da pasta de Maria da Graça Carvalho poderia ter evitado alguns dos problemas ambientais agora levantados.

Alterações casuísticas à REN e à RAN

Um desses problemas são as alterações casuísticas à Reserva Agrícola Nacional (RAN) e à Reserva Ecológica Nacional (REN) que os municípios passam a ter o poder de fazer. É certo que o diploma contém exceções: não é possível construir em “faixas marítima de proteção costeira, praias, barreiras detríticas, tômbolos, sapais, ilhéus e rochedos emersos no mar, dunas costeiras e dunas fósseis, arribas e respetivas faixas de proteção, faixa terrestre de proteção costeira, águas de transição e respetivos leitos, margens e faixas de proteção; cursos de água e respetivos leitos e margens; lagoas e lagos e respetivos leitos, margens e faixas de proteção; albufeiras que contribuam para a conectividade e coerência ecológica da REN, bem como os respetivos leitos, margens e faixas de proteção, zonas adjacentes, zonas ameaçadas pelo mar e zonas ameaçadas pelas cheias”.

Quanto à RAN, ficam de fora as terras classificadas como A1 (aptidão elevada para uso agrícola genérico) e os solos classificados como classe A (suscetíveis de utilização intensiva, com poucos riscos associados) e classe B (capacidade de uso elevada, com limitações moderadas). O problema é que sobram ainda muitas zonas sensíveis.

Em termos de REN, não estão protegidas as áreas estratégicas de infiltração e de proteção e recarga de aquíferos, áreas de elevado risco de erosão hídrica do solo e áreas de instabilidade de vertentes. No caso da RAN, passa a ser possível construir em terras de classe A0, ou seja, sem aptidão para uso agrícola, mas também A2, A3 e A4, que apresentam níveis variáveis de aptidão agrícola.

A estes juntam-se ainda os da classe C, com capacidade de uso moderada e riscos de erosão elevados, os da subclasse Ch, com permeabilidade lenta, os da classe D, com riscos de erosão elevados a muito elevados, e os da classe E que, em muitos casos, não são suscetíveis de nenhuma utilização económica, podendo servir para vegetação natural ou floresta de proteção ou recuperação.

Política integrada de solos

Para o CNADS, o acesso à habitação não se resolve partindo de um pressuposto de falta de solo urbano que está por demonstrar.

Os dados do Observatório do Ordenamento do Território e do Urbanismo (Direção-Geral do Território) e no Relatório do Estado do Ordenamento do Território 2024 (REOT 2024), citados no parecer, apontam para a existência de uma área ligeiramente superior a 50 % de solo urbano por edificar. Ainda que aqui se incluam áreas de estacionamento, logradouros e quintais, é entendimento do CNADS que ainda persistem áreas onde é possível edificar. E, antes disso, falta conhecer com rigor quais são as situações em que efetivamente ocorre escassez de solo. Depois, importaria também atuar ao nível da fiscalidade, com “atualização do valor patrimonial tributável dos solos urbanizáveis, medidas de fiscalidade de incentivo e penalização, revisão do código das expropriações e outras consideradas relevantes”, propõe o parecer.

Só amanhã se saberá se o Decreto-Lei irá sofrer alterações, mas para João Ferrão seria importante que as contradições entre peças legislativas e orientações de política nacional fossem alvo de maior escrutínio, de forma a evitar conflitos jurídicos. Para o geógrafo, o Centro de Planeamento e de Avaliação de Políticas Públicas (PLANAPP), que se dedica precisamente ao planeamento e monitorização das políticas públicas, deveria ter um sistema robusto de avaliação da coerência legislativa, capaz de assinalar situações contraditórias.

FOTO NA MONTRA CHRISTOP00 / PIXABAY

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