A importância da geotecnia na gestão das águas subterrâneas

  • 01 julho 2022, sexta-feira
  • Água

A cada vez maior exigência social para a sustentabilidade ambiental, associada ao aproveitamento de recursos vitais, como é o caso das águas subterrâneas, tem constituído um desafio para as áreas de geologia, hidrogeologia e, não menos importante, para a geotecnia. A boa gestão das águas subterrâneas encontra-se associada à qualidade de vida das populações, em particular nos grandes centros urbanos, a qual contempla, em paralelo, a ocupação, cada vez maior, dos espaços subterrâneos. Este enquadramento, que muitas vezes se traduz numa maior impermeabilização da superfície dos terrenos, com inevitáveis consequências nos regimes hidrogeológicos, tem possibilitado o desenvolvimento de técnicas de conceção, de projeto e de execução de obras, em particular de escavações em meio urbano, com o objetivo de tentar conciliar, ao máximo, a minimização do impacto nos regimes hidrogeológicos locais com a ocupação dos espaços subterrâneos.

De acordo com Chambel A. e Abrunhosa M. [2], a água subterrânea correspondia, em 2017, a cerca de 98% de toda a água doce no globo e contribuía, em grande percentagem, para todas as utilizações, fosse o abastecimento público ou doméstico, a produção agrícola, pecuária ou a indústria. Constituía e continua a constituir, também, a principal fonte de abastecimento em regiões com escassez de água, funcionando como um tampão contra eventos climáticos extremos.

A importância da caracterização geotecnica

Segundo Carvalho J. M. [1], as águas subterrâneas são fator relevante no projeto, construção e monitorização das obras de engenharia, em particular nas que envolvem trabalhos de escavação. A grande maioria dos problemas geotécnicos resulta da presença, ou da ausência, da água e de alterações, naturais ou antrópicas, dos regimes hidrogeológicos, podendo ser determinados pela construção de obras de engenharia associadas à impermeabilização superficial e/ou à execução de escavações.

Segundo o mesmo autor [1], para o hidrogeólogo a água subterrânea é o recurso que alimenta as nascentes, linhas de água e zonas húmidas e está disponível para extração e utilização nas mais variadas atividades humanas. Em contraste, para o geotécnico, a água subterrânea constitui, em geral, um desafio que requer soluções de engenharia, por vezes, complexas. Na generalidade, obras que determinem a interseção de maciços saturados apresentam maiores desafios construtivos ou de exploração, do que aquelas que intersetam maciços não saturados ou de baixa a muito baixa permeabilidade.

Ainda segundo o mesmo autor [1], a arte e a técnica da engenharia adotam métodos para mitigar os efeitos do fluxo de águas subterrâneas (Figura 1) na construção e/ou na fase de exploração das obras. Em alguns casos, é possível conceber soluções em que os sistemas de rebaixamento permanente sirvam, também, para a produção de água para usos consumptivos. A água subterrânea pode ser um problema temporário, durante a fase de construção, ou a longo prazo, se estruturas de grande dimensão interagirem com os regimes de escoamento. Deficiente prospeção geológica ou deficiente monitorização podem conduzir a atrasos, sobrecustos e problemas operacionais e de manutenção durante a vida útil da obra. Uma visão pluridisciplinar que leve à identificação dos principais problemas pode ajudar a controlar os riscos técnicos e económicos, sempre envolvidos em obras de engenharia. Os modelos hidrogeológicos de funcionamento dos sistemas hidrogeológicos em maciços terrosos e rochosos assumem-se, assim, como importante apoio à prospeção geotécnica e à conceção, projeto e execução das obras.

Figura 1 – A água subterrânea integrada no ciclo da água [4]

A importância dos estudos hidrogeológicos

Como já referido, os estudos hidrogeológicos, em paralelo com uma adequada caracterização geológica e geotécnica do maciço interessado pela obra, apresentam um papel fundamental no apoio à definição e à conceção das melhores soluções de engenharia. Apesar de esta situação se encontrar consagrada na regulamentação das principais cidades, como é o caso de Lisboa [3], nem sempre os estudos hidrogeológicos, bem como os estudos geológicos e geotécnicos, são desenvolvidos com a participação da equipa projetista, em particular das especialidades de escavação e contenção periférica e de estruturas e fundações. Esta situação pode condicionar a desejável orientação dos estudos, logo desde a sua fase inicial, para a resolução dos desafios de engenharia associados ao projeto e à obra, induzindo, por vezes, a tomada de decisões técnicas e económicas menos apropriadas.

Nas Figura 2 e na Figura 3 é ilustrado, a título de exemplo, um modelo tridimensional adotado num estudo hidrogeológico com a participação direta da equipa afeta ao projeto de escavação e contenção periférica, onde foi simulado o regime hidrogeológico, antes e depois da construção do piso enterrado do novo edifício, permitindo definir e quantificar, previamente, as melhores soluções de engenharia, compatíveis com a minimização do impacto no referido regime hidrogeológico. O Plano Diretor Municipal de Lisboa (PDM) identificava a zona em estudo como de vulnerabilidade muito elevada às inundações na quase totalidade da parcela.

Figura 2 – Modelo 3D geotécnico e hidrogeológico de obra de escavação a executar em Lisboa, junto ao rio Tejo

Figura 3 – Estimativa de caudais com base em modelo 3D geotécnico e hidrogeológico de obra de escavação a executar em Lisboa, junto ao rio Tejo, seção Sul - Norte

Os resultados obtidos através do modelo numérico permitiram concluir que a realização do piso enterrado, associado à construção do novo edifício, não iria condicionar o regime hidrogeológico do local, nem incrementar o risco de inundação. Contudo, face ao risco geotécnico, indissociável deste tipo de obras com elevada componente geotécnica, em particular a impossibilidade de prever, com total rigor, o comportamento dos terrenos antes do início dos trabalhos de escavação, em termos de resistência, de deformabilidade e, sobretudo, de permeabilidade, parâmetro cujo valor pode variar em distâncias reduzidas de 1x10-3 para 1x10-9 (Figura 4), os resultados obtidos deverão ser validados em fase de obra e em tempo útil, através de uma adequada monitorização da mesma obra.

Figura 4 – Variação do valor do coeficiente de permeabilidade em solos

Exemplos de obras de escavação na cidade de Lisboa

Na cidade de Lisboa têm sido realizados diversos trabalhos de escavação, respeitando os regulamentos e as normas municipais, devidamente suportados em estudos geológicos e geotécnicos, bem como e quando aplicável, em estudos hidrogeológicos, Art.º 103 e Art.º 103 – A do RMUEL [3], os quais, com frequência, indicam a existência de níveis freáticos acima da cota final das escavações. Esta informação, quando não é devidamente interpretada, em particular quando os trabalhos intersetam maciços datados do Miocénco (Argilas e Calcários dos Prazeres), do Cretácico Superior (Complexo Vulcânico de Lisboa), ou mesmo do Oligocénico (Formação de Benfica), os quais dispõem, em geral, de baixa a muito baixa permeabilidade, condiciona as soluções de contenção periférica e de fundações. Tal situação determina a opção por soluções com conceção, por vezes, desnecessariamente onerosas e que não permitem, por exemplo, a instalação de sistemas de rebaixamento permanente, associados a caudais baixos e sem perturbação das condições de vizinhança (cone de rebaixamento do nível freático localizado dentro ou muito próximo dos limites do lote), que possam contribuir, igualmente, para o aproveitamento de água na exploração dos edifícios.

Na Figura 5 e na Figura 6 apresentam-se exemplos de escavações em que a opção por uma solução de contenção periférica em parede moldada, com base na informação do estudo geológico e geotécnico, se revelou, em fase de obra, como não estritamente necessária. Em contrapartida, a monitorização do valor dos caudais afluentes aos recintos das obras durante os trabalhos de escavação, associada à monitorização do comportamento das estruturas e infraestruturas vizinhas, permitiu suportar a decisão de otimização da solução de fundações. Esta otimização consistiu na substituição de uma solução impermeável, constituída por uma laje de fundação de elevada espessura, para poder acomodar as subpressões hidrostáticas, por uma solução drenada, materializada por um sistema de sapatas isoladas, interligadas por vigas de fundação, executado sob tapete drenante, constituído por enrocamento, e pavimento em massame armado (Figura 7). Nestes casos, foi instalado um sistema de rebaixamento permanente, associado a caudais de baixo valor, situação justificada pelo reduzido gradiente (quociente entre a variação da cota do nível freático do exterior para o interior da obra e o comprimento de percolação da água) conferido pela ficha (comprimento enterrado) das paredes moldadas e pela muito baixa permeabilidade média dos terrenos interessados, não determinando qualquer perturbação no terreno e nas estruturas e infraestruturas vizinhas. Esta solução além dos benefícios económicos e de prazo de execução para as obras, possibilitou ainda o aproveitamento da água recolhida, à cota do tapete drenante, junto à fundação, para a exploração dos edifícios, com claras vantagens do ponto de vista da sustentabilidade dos mesmos edifícios. Numa situação limite, a água recolhida poderia ser novamente devolvida ao terreno, permitindo a recarga natural dos aquíferos.

Figura 5 – Exemplo de escavação no maciço datado do Miocénico, na cidade de Lisboa, em que a afluência de água, ao contrário do estimado com base na informação dos estudos iniciais, foi muito residual

Figura 6 – Exemplo de escavação no maciço datado do Oligocénico, na cidade de Lisboa, em que a afluência de água, ao contrário do estimado com base na informação dos estudos iniciais, foi residual

Figura 7 – Otimização da solução de fundações com base na monitorização do valor dos caudais afluentes

Considerações finais

No presente artigo procurou-se, de uma forma resumida, evidenciar a importância da geotecnia na gestão das águas subterrâneas, podendo ser destacados os seguintes pontos:

  • Em fase de projeto, a importância de uma adequada prospeção geológica, hidrogeológica e geotécnica, complementada por uma boa interpretação dos resultados obtidos, destacando-se, em particular, o cruzamento entre as informações relativas às cotas piezométricas e à permeabilidade dos terrenos, que venham a ser interessados pela obra.
  • Sempre que possível, os estudos hidrogeológicos devem ser realizados em parceria com os responsáveis pelos projetos de escavação e contenção periférica e de estruturas e fundações, de forma que, logo nessa fase, possam ser equacionadas e concebidas as melhores soluções, técnicas, económicas e de compatibilidade com o regime hidrogeológico.
  • Em fase da obra, em particular durante os trabalhos de escavação, a monitorização revela-se de extrema importância na aferição do valor dos caudais afluentes ao fundo do recinto da escavação, bem como do comportamento das estruturas e infraestruturas vizinhas, em particular a localização do cone de rebaixamento do nível freático. Atendendo à incerteza do comportamento dos geomateriais, solos e rochas, a monitorização apresenta um papel fundamental na gestão do risco geotécnico através da validação, em tempo útil e à escala real, dos pressupostos assumidos na fase de projeto, em particular os geotécnicos e hidrogeológicos.
  • A sensibilização de todos os agentes que gravitam no setor da construção para o incentivo à aplicação de soluções sustentáveis, através do uso eficiente de recursos vitais como é o caso da água subterrânea.

Por último, destaca-se a importância da geotecnia nas soluções de engenharia que permitem explorar os espaços subterrâneos, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida das populações, o que pode e deve ser efetuado de forma devidamente associada a procedimentos sustentáveis, como é o caso da gestão dos recursos existentes no subsolo, tais como a água subterrânea, destacada no presente artigo, e a temperatura (geotermia).

Referências bibliográficas

[1]

Carvalho, J. M. – A hidrogeologia nas obras de engenharia, 11º Seminário sobre Águas Subterrâneas, ISEP, Porto, 2017.

[2]

Chambel, A. e Abrunhosa, M. – Governança de Águas Subterrâneas: uma prioridade a nível internacional, 11º Seminário sobre Águas Subterrâneas, ISEP, Porto, 2017.

[3]

RMUEL – Regulamento Municipal de Urbanização e Edificação de Lisboa, DR – 2ª Série, Parte H, nº169, 31 de Agosto de 2021.

[4]

USGS – Serviços Geológicos dos Estados Unidos (United States Geological Survey).

Alexandre Pinto, JETsj Geotecnia Lda.

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