Gestão e valorização da água

Vª Exa. fornecia, eu pagava. Faltamos, evidentemente, à fé deste contrato; eu, se não pagar, V. Exa., se não fornecer.

Se eu não pagar, faz isto: corta-me a canalização.

Quando V. Exa. não fornecer, o que hei-de fazer, Exmo Senhor? É evidente que para que o nosso contrato não seja inteiramente leonino, eu preciso, no análogo àquele em que Vª Exa. me cortaria a canalização, de cortar alguma coisa a Vª Exa.

Pretensa carta de Eça de Queirós a Carlos Pinto Coelho, director da Companhia das Águas, publicada em 1970 na secção A Mosca do vespertino “Diário de Lisboa”.

É bem sabido que não há vida sem água, mas a banalização da sua (permanente) presença nas torneiras, faz-nos esquecer muitas vezes a natureza crítica e valiosa da sua existência. O conceito de sempre ao dispor impede-nos do deslumbramento comum na descoberta de preciosidades, palavra que, sem exagero, pode aplicar-se à água.

É por isso difícil compreender que não se acautelem tragédias como a recente dos incêndios, este ano recorde em área ardida. Na urgência de responder às populações em crise, adiamos a reflexão sobre as alterações climáticas, a falta de políticas para a floresta e para o ordenamento territorial. Para além da água que foi usada para apagar os fogos, há que equacionar desde já os impactes para a gestão da qualidade e para o abastecimento público que virão associados à erosão e lixiviação das áreas ardidas. Parece “notícia” para amanhã ou para depois, quando começarem as chuvas, mas as ameaças estão já presentes. A gestão integrada da água e do Ambiente são uma prioridade!

Apesar das circunstâncias, Portugal é privilegiado porque os seus indicadores de atendimento e de desempenho são muito bons, mas há outras realidades, noutras geografias, que carecem de atenção. O planeta é só um: está tudo interligado. Além disso, as disponibilidades de água no nosso país são limitadas, somos um território com escassez hídrica, sujeito aos efeitos das alterações climáticas e à ocorrência de situações de precipitação extrema e de seca frequente. Urge, por isso, uma gestão e valorização efectiva da água, compreendendo aspectos de natureza estrutural, política, social e ambiental.

Abordamos neste número temáticas como a gestão de disponibilidades, a gestão da qualidade, as assimetrias sazonais, a eficiência e modernização de infraestruturas, o controlo e a diminuição das perdas de água, a diversificação das origens de água para diferentes usos, urbanos e não urbanos, a utilização de água para reutilização, a inovação ou a digitalização.

A história está repleta de episódios aliados às questões do abastecimento de água para as populações: as construções grandiosas de aquedutos e os desenvolvimentos conjuntos da Arquitectura e da Engenharia; aspectos associados à saúde pública, às doenças; controlo da qualidade e fornecimento de água segura; ou, ainda, estórias pitorescas como a instalação na Casa Branca de três autoclismos abastecidos por cisternas colocadas no sótão, por ordem do presidente Thomas Jefferson, em 1801. Ao longo dos séculos, a ciência, a técnica, a criatividade e a inovação estiveram sempre presentes nos desenvolvimentos associados ao sector da água.

O esquecimento quase sistemático e colectivo do valor intangível da água é uma ameaça para a nossa sobrevivência. Urge a salvaguarda deste recurso e a reflexão em publicações como esta revista, feita com generosas e pertinentes colaborações, que muito agradeço. São valiosos e sábios testemunhos sobre um tema que me é tão querido. Um agradecimento muito especial ao Prof. Doutor António Carmona Rodrigues, meu caro colega e amigo de muitos anos e com quem aprendi, entre outras coisas, hidrologia.

“Ninguém ouve a canção, mas o ribeiro canta!
[…] Água impoluta da nascente,
És a pura poesia
Que se dá presente
Às arestas da humana penedia.”

“Água”, Miguel Torga

Editorial da Indústria e Ambiente nº 153, julho/agosto 2025, dedicada ao tema "Água: gestão e valorização"
Leonor Amaral

Diretora da Indústria e Ambiente / Professora na FCT-UNL

Se quiser colocar alguma questão, envie-me um email para info@industriaeambiente.pt

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