Elétricos e eletrónicos: como recuperar o direito de prolongar a vida dos equipamentos?

Fotografia: John de Jong_Unsplash

por Cátia Vilaça

A reparação de equipamentos elétricos e eletrónicos não é uma tarefa fácil. Exige conhecimento e acesso a equipamentos. Se o trabalho for entregue a terceiros, os custos continuam a somar e, para muitos equipamentos, deixa de compensar.

A Europa tem dedicado atenção a este assunto, e nos últimos meses tem-se assistido à publicação de propostas para reforçar os direitos dos consumidores e estimular práticas de reparação. É o caso da proposta de alteração às Diretivas 2005/29/CE e 2011/83/EU, que esteve até maio em consulta pública e pretende capacitar os consumidores para a transição ecológica através de melhor proteção contra práticas desleais. O objetivo é proteger os consumidores de práticas como o greenwashing e a obsolescência programada. A proposta prevê, por exemplo, “fornecer informações sobre a reparabilidade dos produtos, através de uma pontuação de reparabilidade ou de outra informação pertinente relativa à reparação, se disponível, para todos os tipos de bens” ou “fornecer informações sobre a disponibilidade de atualizações gratuitas de software para todos os bens com elementos digitais”.

Em agosto, a Comissão Europeia apresentou também um draft com novos requisitos de ecodesign e etiquetagem energética para telemóveis e tablets, assegurando-lhes maior durabilidade e reparabilidade. A proposta prevê que as baterias dos smartphones sejam substituíveis (a menos que os fabricantes forneçam determinadas garantias de durabilidade). Também se pretende fornecer informação mais transparente sobre o preço de peças sobresselentes e pretende-se igualmente que os recondicionadores sejam equiparados a reparadores profissionais, no que se refere à disponibilidade de peças sobresselentes do fabricante, acesso à reparação e informações sobre manutenção.

Ainda este ano, Bruxelas deu luz verde à criação de uma porta de carregamento comum para telemóveis, tablets e headphones, ainda que a medida só entre em vigor em 2024.

Apesar destes avanços, falta ainda uma peça importante do puzzle – importante e agregadora. A Comissão Europeia anunciou, em 2021, a intenção de avançar com uma proposta legislativa sobre o direito à reparação. Inicialmente, previa-se a sua apresentação para o terceiro trimestre deste ano, mas as mais recentes estimativas atiram-na para o final de novembro, integrada no segundo pacote de economia circular. Entretanto, o Parlamento Europeu já fez chegar à Comissão medidas que têm como objetivo tornar as reparações sistemáticas, rentáveis e atrativas. Sugere-se que seja atribuído aos consumidores um bónus pela reparação de um dispositivo defeituoso ou a disponibilização de um dispositivo de substituição durante a reparação; o acesso gratuito a informações de reparação e manutenção e a garantia de atualizações de software durante um período mínimo; a inclusão de peças removíveis e substituíveis nos dispositivos e o prolongamento das garantias.

Do outro lado (do lado do utilizador), a vontade parece estar lá. Um inquérito do Eurobarómetro mostrou que quase oito em cada 10 inquiridos gostaria de obrigar os fabricantes a facilitar a reparação dos dispositivos digitais, mas a proporção baixa de quatro para 10 se estiver em causa um aumento de preço.

Ugo Vallauri é codiretor do The Restart Project, um movimento baseado no Reino Unido que se tem batido pelo direito à reparação, quer ensinando-as a reparar os seus equipamentos, quer através de lobbying junto dos legisladores. O movimento tem participado nas consultas públicas que a Comissão tem promovido a propósito da legislação preparação, como foi o caso da iniciativa sobre o ecodesign de smartphones e tablets, colocada em consulta pública o ano passado e que deverá ser aprovada ainda este ano. À Indústria e Ambiente, Vallauri reconhece grande potencial, mas também falta de ambição, por não se considerar o custo das peças sobresselentes na classificação do grau de reparabilidade de um equipamento. Ugo Vallauri não duvida de que é possível obrigar as grandes tecnológicas a disponibilizar produtos mais duráveis e mais fáceis de reparar, mas alerta que tal “não irá acontecer enquanto a regulação não obrigar os fabricantes a alcançar níveis mínimos de reparabilidade”. Ainda que a procura possa incentivar esta mudança, escalá-la depende, para Vallauri, de regulação ambiciosa que torne a mudança inevitável. Vallauri lembra, ainda, as oportunidades de criação de emprego na área do recondicionamento e da revenda que uma legislação deste tipo pode potenciar.

Reparar – da pequena à grande escala

Expandir as práticas de reparação pode começar com iniciativas de pequena escala. É o caso do projeto CREW, nascido na Lipor em 2018. Desenvolvida em conjunto com a European Recycling Platform (ERP), a rede CREW é formada por um conjunto de reparadores. Trata-se de entidades que a Lipor foi juntando à volta do objetivo de dar uma nova vida aos equipamentos. Hélder Marques, responsável pelo projeto, explicou que foi contactado um conjunto de entidades com disponibilidade em termos de funcionários e de espaço, sendo a formação e as ferramentas assegurados pela Lipor. O objetivo não é voltar a colocar os produtos no mercado – já que isso obrigaria a um conjunto de certificações incompatível com a escala deste projeto, mas devolver. A jusante do processo de reparação há outra rede de parceiros – Juntas de Freguesia, centros sociais, ou a Cruz Vermelha da Póvoa de Varzim, cujo trabalho de apoio às respetivas comunidades passa agora a incluir, também, a reparação de equipamentos. A informalidade do processo não permite associar garantias, mas existe o compromisso de voltar a tentar reparar caso avarie novamente.

Apesar de ser um projeto de pequena escala, em 2021 o CREW recuperou 4033 kg de equipamento e assegurou 272 horas de formação. Promoveu ainda 21 eventos, entre formações, campanhas, workshops e "Repair Cafes”.

Ainda que em Portugal conte com o impulso da Lipor, o Repair Cafe é um evento de raízes internacionais. A ideia nasceu na Holanda pelas mãos de Martine Postma, que desde 2007 tem vindo a fomentar a sustentabilidade a nível local. O primeiro Repair Cafe aconteceu em Amesterdão, a 18 de outubro de 2009, e desde essa altura o conceito expandiu-se pelo mundo.

São eventos assegurados por voluntários com experiência em reparação. As pessoas são convidadas a trazer os seus equipamentos e a participar no processo de reparação, ganhando também experiência.

O Dia Internacional da Reparação, que se assinalou a 15 de outubro, serviu de mote à realização do Repair Cafe Lisboa e do Repair Cafe Porto. Na baixa do Porto, o evento aconteceu no âmbito do Troca-me Isto!, um encontro dedicado à economia circular. No OPO-LAB, um espaço de coworking da cidade, juntaram-se bancas para trocas de livros, roupa, reciclagem de brinquedos e também reparação de pequenos eletrodomésticos. Pelo espaço do Repair Cafe iam passando microondas, ferros de engomar e máquinas de café. Ana Coelho, corresponsável pelo Repair Cafe Porto e membro da Circular Economy Portugal, explica à Indústria e Ambiente que a avaria do fusível e do condensador são os problemas mais frequentes. Se a avaria do fusível não é um problema de difícil resolução, o mesmo pode já não se aplicar à abertura do equipamento – os reparadores deparam-se frequentemente com excesso de parafusos e clipes neste tipo de equipamentos. “Os equipamentos não são feitos para serem desmantelados”, resume Ana Coelho. A obsolescência programada é um aspeto sempre visível, assegura a responsável, e ainda que tal se verifique mais nas marcas brancas, os equipamentos de marca também são feitos para apenas poderem ser desmontados pela própria marca.

Os voluntários do Repair Cafe não têm peças de substituição nem podem oferecer garantias, portanto muitas vezes recorre-se a estratégias para prolongar a vida do equipamento, como um brinquedo cujo carregador avariou e a solução passou por fazer uma ligação direta com um cabo trazido pela pessoa.

Apesar das limitações, Ana Coelho regista a adesão ao evento, que no Porto acontece desde 2017, e o interesse das pessoas em perceber se existe possibilidade de reparar os equipamentos.

Quando reparar (já) não é uma opção, como se processa o fim de vida?

O fluxo de Resíduos de Equipamentos Elétricos e Eletrónicos (REEE) tem várias especificidades. Como abrange uma vasta gama de equipamentos, está dividido em seis categorias. A recolha, sobretudo dos equipamentos de maiores dimensões, também se processa segundo as regras definidas pelos municípios, que habitualmente têm um serviço de recolha próprio para estes equipamentos. Tal não impede, contudo, que muitos acabem na via pública e lá permaneçam tempo suficiente para que sejam depurados dos componentes mais valiosos. Os equipamentos que chegam à Lipor atestam isso mesmo. Os frigoríficos vêm sem compressor, sem chapa e sem grelha traseira. “Há um mercado paralelo que existe e está cada vez mais forte e que nos preocupa porque estes equipamentos estão a ser desmantelados em sítios sem condições. Todos estes gases e metais pesados, está tudo a ser gerido de forma errada”, alerta Hélder Marques.

Ricardo Furtado é diretor-geral adjunto da Electrão – Associação de Gestão de Resíduos, uma das três entidades gestoras de REEE a atuar em Portugal, a par da ERP Portugal e da Weeecycle. Conhece, por isso, de perto o problema do mercado paralelo do desmantelamento de equipamentos. A Electrão tem uma rede de mais de oito mil locais de recolha que abrange escolas, quartéis de bombeiros, municípios, empresas e particulares. A gestão dos resíduos varia, e o grau de penetração do setor paralelo também. Na distribuição, por exemplo, o mecanismo da retoma aquando da venda de um equipamento acaba por não deixar espaço ao fenómeno, por isso os equipamentos vêm completos, e nas escolas e bombeiros acontece o mesmo. Já os equipamentos provenientes de municípios e dos Sistemas de Gestão de Resíduos Urbanos (SGRU) “vêm mais condicionados ou mais canibalizados”, explica Ricardo Furtado. Nestes casos, os equipamentos ou são entregues em ecocentros, onde ficam depois sem vigilância, ou através de recolha porta-a-porta, que pode implicar combinar com o munícipe a colocação do equipamento na via pública até à recolha. Esse hiato é suficiente. “Esse tipo de recolha é muito permeável ao desvio porque os equipamentos acabam por ficar à disposição de quem quiser intervir neles e desviá-los”, sublinha Ricardo Furtado.

Para tentar contrariar esta tendência, a Electrão começou com um projeto-piloto de recolha porta-a-porta de equipamentos volumosos, que implica ir a casa da pessoa recolher o equipamento para que não chegue a ser colocado na via pública.

A repressão das redes que vivem do desvio destes componentes é, para Ricardo Furtado, uma prioridade, porque também é a forma de combater as consequências ambientais de um desmantelamento sem regras. “Nós sabemos que quando um frigorífico nos chega sem compressor, obviamente que o circuito do gás foi aberto e o gás acaba por ser enviado para a atmosfera com as consequências que sabemos a nível da camada do ozono e do aquecimento global”, salienta.

A este propósito, a Electrão iniciou, em 2020, o projeto WEEE-FOLLOW, que consistiu na colocação de dispositivos de GPS em equipamentos previamente distribuídos para acompanhar as respetivas rotas. Até agora, o trabalho permitiu concluir que três em cada quatro equipamentos são desviados para o mercado paralelo. Transmitidos os resultados às autoridades, a Electrão sugeriu à tutela o alargamento da campanha, que decorre agora com o envolvimento de mais entidades gestoras e está a permitir perceber os contornos das operações de desvio de equipamentos.

O que se pode reciclar?

As seis categorias de REEE englobam equipamentos muito diferentes, o que se traduz em processos de tratamento também diferentes, começa por explicar Ricardo Furtado. No caso dos frigoríficos, é feito um tratamento em vácuo para garantir que o circuito de refrigeração é aspirado e o gás retido, seguindo depois para tratamento. A partir desse momento, é feita a reciclagem dos metais e dos plásticos. Se formos para as lâmpadas, é feito o corte da lâmpada em sistema fechado, em vácuo, para garantir a captação dos vapores de mercúrio presentes em algumas delas. O vidro é reciclado, bem como os terminais, normalmente de alumínio.

As consequências ambientais da lógica de usar e deitar fora já não podem ser ignoradas. Por outro lado, muitos dos equipamentos que utilizamos intensivamente, como smartphones, e que substituímos com regularidade, requerem minerais finitos, cuja exploração tem efeitos negativos, ambientais e sociais, para as populações vizinhas dos locais de mineração.

Artigo na Indústria e Ambiente nº136 set/out 2022

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