Rui Godinho: ‘O setor vem sofrendo uma significativa redução de financiamento e investimento’

  • 05 junho 2023, segunda-feira
  • Água

Arranca amanhã, em Santo Tirso, o 5º Encontro da Comissão Especializada de Sistemas de Distribuição de Água (CESDA) da Associação Portuguesa de Distribuição e Drenagem de Águas (APDA). O encontro decorre num cenário de estagnação dos indicadores de perdas de água evidenciado pelo RASARP 2022, e a organização espera que seja uma oportunidade para refletir sobre as causas desta situação. É a primeira vez que o encontro terá dois dias.

À Indústria e Ambiente, Rui Godinho, presidente do Conselho Diretivo da APDA, antecipa algumas das preocupações do setor.

Entrevista por Cátia Vilaça

O mote deste encontro é Redução de perdas de água: Um desafio ao alcance de todos. Em que aspetos esse desafio se tem mostrado mais difícil de enfrentar?

Desde logo porque o Setor da Água e Saneamento, em Portugal, se defronta com problemas estruturais que sobreviveram ao grande salto qualitativo da última década do século XX e primeira deste século.

Acrescenta-se o facto de a sua organização se caracterizar por um acentuado dualismo, que se manifesta numa percentagem largamente maioritária de entidades gestoras com menos de 10 mil clientes, cobrindo grande parte do território nacional, que se reflete em indicadores relativos à existência de significativas perdas e volumes de água não faturada, no deficiente conhecimento das infraestruturas e na ausência de recuperação de gastos, com implicações na qualidade dos serviços.

O setor vem sofrendo também uma significativa redução de financiamento disponível e de investimento, estando sujeito a novas contingências, como a emergência climática, que implica uma crescente escassez de disponibilidades hídricas, como também a uma crise energética e um ambiente inflacionista, com efeitos negativos nos custos de operação e manutenção dos sistemas instalados.

Para as entidades gestoras com menor capacidade de investimento, que soluções permitem ganhar economia de escala e combater eficazmente as perdas?

A agregação de entidades gestoras, criando dimensões até, pelo menos, 80 mil clientes (como a APDA vem apresentando há vários anos), permitiria organizar estruturas de gestão que, se bem conduzidas, permitiriam alcançar indicadores de sustentabilidade para concretizar medidas e ações de reabilitação e renovação das redes de distribuição de água e saneamento, hoje claramente insuficientes.

Aqui há que sublinhar que, segundo o RASARP 2022 (Relatório Anual dos Serviços de Águas e Resíduos em Portugal), as taxas de reabilitação e renovação destas infraestruturas têm vindo a decrescer de forma preocupante, sendo urgente inverter esta tendência, através de um ajustado Plano Estratégico de Gestão de Ativos, que reforce significativamente as intervenções de reabilitação, até 2030, nas condutas de água em alta e em baixa e nas redes de coletores, apoiadas por adequados meios financeiros que faltaram no PRR (Plano de Recuperação e Resiliência), onde 92 % do país ficou de fora de apoios ao Ciclo Urbano da Água.

Recordo que a APDA, em fase de Consulta Pública do PRR, propôs, sem êxito, a correção desta lacuna, com a afetação de mil milhões de euros a esta importante componente.

É fundamental assumir uma adequada política, técnica e economicamente sustentada, de reabilitação e renovação de ativos, garantindo taxas e metas anuais de intervenção que alarguem fortemente os frágeis indicadores atuais, através de adequadas dotações, pois o que se conhece hoje, para o período 2020-2030, fica aquém do necessário.

A eficiência hídrica não é uma preocupação recente do setor, mas a escassez de água agrava-se de ano a ano. Que tipo de pressão se coloca atualmente sobre os sistemas?

A maior preocupação resulta do facto de vivermos já em situação de escassez sistémica de recursos hídricos no país, na Península Ibérica e na Bacia do Mediterrâneo, com todas as consequências que daí decorrem para as disponibilidades necessárias para, futuramente, satisfazer a procura e as necessidades dos principais consumidores e da população em geral.

Para além tudo o que implica para o consumo humano, trata-se da economia, do desenvolvimento, do ambiente, da biodiversidade e de um potencial foco gerador de conflitos intersectoriais, regionais e locais.

Temos chamado a atenção para o caso particular da sobreexploração dos recursos subterrâneos, que vêm sendo sujeitos a pressões intensivas, podendo colocar em causa as suas disponibilidades e provocar situações irreversíveis na sua qualidade, através da intrusão salina, que já se verifica em múltiplas captações no litoral a sul do Tejo, Alentejo e no Algarve.

Há, assim, que garantir, através de legislação adequada, que os ativos do setor da água e dos recursos hídricos sejam considerados “ativos estratégicos” para a segurança, defesa e abastecimento do país, como é o caso da energia, telecomunicações e transportes, tomando as medidas consequentes e corrigindo, desta forma, uma inaceitável ausência da “água” no enquadramento legal deste conceito.

Para além das perdas dos sistemas, temos a água que é perdida por não ser aproveitada. As inundações provocadas por eventos de precipitação extrema vão continuar a acontecer. Existe alguma perspetiva de termos, a breve trecho, infraestrutura capaz de conter essa água e armazená-la para usos futuros?

Às secas seguem-se, efetivamente, com crescente frequência, outros fenómenos extremos, como, por exemplo, fortes e concentradas chuvadas, com a consequente ocorrência de inundações em áreas metropolitanas, urbanas, suburbanas e outras zonas sensíveis.

Urge que as cidades e as áreas e regiões metropolitanas incorporem este novo tipo de ameaças nas suas práticas de planeamento estratégico e urbano, reduzindo drasticamente as intervenções que provoquem impermeabilização dos solos, associando a construção de bacias de retenção superficiais e subterrâneas nas principais bacias e linhas de água do seu território, associando estes caudais aos usos urbanos de “segunda linha”.

Agregando os efeitos destes episódios meteorológicos extremos com a ação da elevação do nível do mar, do aumento da temperatura média e da redução da precipitação, estamos perante consequências potencialmente devastadoras também nos serviços dos ecossistemas terrestres e marinhos, bem como na segurança hídrica e alimentar.

A reutilização de águas residuais tem evoluído nos últimos tempos. Podemos esperar um uso mais intensificado deste recurso em breve, assim a legislação o permita?

É fundamental que tal aconteça, pois já se perdeu tempo demais e significativos recursos aplicados nos anos 90 do século XX na preparação de ETAR de grande e média dimensão, particularmente na Área Metropolitana de Lisboa, para produzirem águas residuais tratadas que substituam a água potável para os antes referidos “usos de segunda linha” (rega de espaços verdes, irrigação de culturas, lavagem de ruas estações de serviço, aquacultura). Ainda está por explicar por que se interromperam estes processos e só agora se retoma (e bem!) esta importante componente da gestão racional dos recursos hídricos. Espera-se, assim, que o projeto ApR (Água para Reutilização), agora a iniciar os seus primeiros passos, possa seguir sem percalços e com a eficiência desejada.

Esta nova situação torna urgente também reavaliar todos os parâmetros de abordagem que concorrem para garantir a “resiliência” dos Sistemas de Abastecimento de Água, Drenagem e Saneamento de Águas Residuais, tão flagrantemente postos em causa em situações como as verificadas no ano de 2017, em diversas regiões do país.

Promover efetivamente o uso eficiente da água e a eficiência energética associada, reciclando e reutilizando águas residuais tratadas, combatendo as perdas nas redes e no transporte e a água não faturada, e caminhando com segurança para o desenvolvimento de práticas consistentes de “Economia Circular” e envolvimento ativo de todos os “stakeholders”, deverá constituir um dos pilares de uma política pública coerente e sustentável.

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