Como abordar o estudo de locais contaminados sem uma legislação de proteção do solo

  • 26 junho 2015, sexta-feira
  • Solos

Por Jorge, Celeste, Investigadora do Laboratório Nacional de Engenharia Civil

A degradação geral de locais e a subsequente contaminação de solos estão estritamente relacionadas com atividades que sobre esses mesmos decorreram, muitas vezes, durante diversas décadas. À medida que uma dada atividade poluidora e/ou degradante, ou outras que se lhe seguiram, foi ocorrendo, as diversas funções dos solos, que servem de sustentáculo à vida vegetal e animal, assim como a sua capacidade de depuração das águas, que se infiltram e atingem os aquíferos, foram sendo destruídas. Esta destruição de funções resulta do modo como a quantidade e o tipo de compostos químicos ou materiais biológicos nefastos foram introduzidos no meio, inviabilizando e devastando, muitas vezes, todas as funções de autorregeneração deste compartimento ambiental (reduzindo a sua capacidade de filtro e tampão) e permitindo que essas substâncias atingissem recetores com a eventualidade de uma concentração cumulativa à medida que se progride para o topo da cadeia alimentar.

Dessa forma, podem gerar-se problemas ambientais graves e de saúde pública, com o potencial desenvolvimento de um conjunto de doenças que estão reconhecidas internacionalmente como encontrando-se diretamente relacionadas com estes cenários. Neste sentido, verifica-se atualmente um aumento de doenças diversas como a mutagénese e a carcinogénese, que se manifestam de formas muito distintas, de acordo com as especificidades dos indivíduos que as desenvolvem.

Muitas agências reguladoras responsáveis pelas situações de contaminação ocorridas usam avaliação de risco nos seus programas de reabilitação dos locais. Estas agências desenvolvem e adotam regulamentos, guias e políticas que definem a utilização da avaliação de risco no processo de tomada de decisão para a reabilitação de locais. Os regulamentos, os guias e as políticas incorporam frequentemente a gestão de risco nas decisões que definem, por norma, abordagens, cenários e parâmetros como pontos de partida para a avaliação de risco e o desenvolvimento do risco com base em valores guia. Os gestores de projetos e os tomadores de decisão, contudo, devem manter o julgamento profissional quando abordagens, cenários e parâmetros alternativos são usados em avaliações de risco para um local específico. Nestes casos, apesar da abundância de recursos e experiência disponível, os gestores de projetos e os tomadores de decisões são frequentemente confrontados com dificuldades em questões técnicas (ITRC, 2015).

Enquanto grande parte da ciência da avaliação de risco é a mesma em programas de regulamentação, as abordagens de avaliação de risco e a de decisões na gestão de risco, relacionadas com a avaliação de risco, variam entre diferentes programas de regulamentação (por exemplo, os programas de regulamentação diferem na forma como definem o risco-alvo, os cenários de exposição padrão e os parâmetros de exposição). Para além disso, a variabilidade dos parâmetros guia, pressupostos e metodologias recomendadas entre os programas de regulamentação pode fazer com que os resultados da avaliação de risco variem várias ordens de grandeza. Os programas de regulamentação também diferem no tipo de abordagem para definir os parâmetros chave da avaliação de risco (por exemplo, usando a concentração máxima versus a concentração média como uma concentração de exposição) e os processos (por exemplo, eliminando vias de exposição a partir da consideração de uma avaliação de risco devido aos controlos institucionais vigentes ou propostos, controlos de engenharia ou ambos) quando os parâmetros predefinidos e os pressupostos não se aplicam (ITRC, 2015).

Relativamente ao cenário português, não existem valores guia para a abordagem de locais contaminados. Porém, da legislação ambiental portuguesa já consta uma série de diplomas legais que pretendem em conjunto proteger o ambiente (Jorge, 2008).

Em Portugal, a Agência Portuguesa do Ambiente, I.P., (APA, I.P.), na ausência de uma legislação específica sobre a proteção do solo e sua contaminação, tem aconselhado a seguir os Canadian Environmental Quality Criteria for Contaminated Sites in Ontario (Soil, Ground Water and Sediment Standards for Use Under Part XV.1 of the Enviromental Protection Act, 2009), como primeiro nível de abordagem, assim como o Guidance on Sampling and Analytical Methods for Use at Contaminated Sites in Ontario (Ministry of Environment and Energy of Ontario, 1997). Porém, há estudos que utilizam a legislação holandesa – Target Values and Intervention Values for Soil Remediation (Dutch Soil Remediation Circular, 2009), mas esta legislação pode ser menos adequada devido à natureza da litologia daquele país, comparativamente com a existente no território português. Atualmente existe o Real Decreto 9/2005, de 14 de janeiro - Legislación Suelos Contaminados de Espanha (BOE, 2005). Torna-se muito útil, em certas circunstâncias, utilizar os limites admissíveis para a ocupação residencial ou industrial que a USA EPA (Environmental Protection Agency of United States of America) produziu, e que atualiza regularmente (Jorge, 2014).

HISTÓRIA DAS ATIVIDADES ECONÓMICAS PORTUGUESAS COM REPERCUSSÕES NA QUALIDADE DO SOLO E SITUAÇÕES PRIORITÁRIAS

Portugal possui uma pesada herança de áreas degradadas/locais contaminados. Até ao século XIX, a Indústria era um elemento acessório no panorama económico. O fosso que separava Portugal dos outros países europeus, neste domínio, era enorme. Só no século XX, a partir da década de 50, se deu o crescimento industrial.

Na década de 70 verificou-se uma tendência global para a terciarização da economia, acompanhada da aceleração do ritmo de urbanização. Entre 1970 e 1981 verificaram-se alterações nas atividades nos diferentes distritos. Este cenário evidenciou-se com o quase desaparecimento de algumas indústrias tipicamente portuguesas e instalaram-se algumas indústrias mais pesadas, como as de transformação.

Durante a década de 90 muitas situações se alteraram e desde a crise económica, que se iniciou em 2010/2011, muitas indústrias cessaram de forma abrupta, sem planeamento, deixando um passivo ambiental, mais ou menos grave, que é necessário conhecer para uma posterior tomada de decisão sobre as medidas possíveis, compatíveis e adequadas a implementar (Jorge, 2014).

A APA referia que as áreas de intervenção prioritária eram: os terrenos afetos à antiga zona industrial de Estarreja (Figura 1); os terrenos da antiga Siderurgia Nacional no Seixal (Figuras 2 e 3); a antiga zona industrial do Barreiro (Figuras 4 e 5); as lamas inertizadas de 12 bacias adjacentes ao Complexo de Sines; a bacia do Alviela (área industrial de Alcanena) e 96 minas abandonadas (Figuras 6 a 8) e as pedreiras abandonadas. O Plano Nacional de Ação Ambiente e Saúde (2010) refere ainda as situações: da Lagoa da Palmeira, junto à Siderurgia Nacional no Seixal; da área da antiga fábrica da SPEL no Pinhal Novo; e das minas de urânio. A acrescentar às áreas referidas pela APA, muitas outras poderiam ser mencionadas. Dever-se-iam considerar prioritárias as que constituem envolventes das mais de 300 antigas lixeiras municipais.

O inventário é uma tarefa muito complicada e mesmo organismos específicos de países com a maior experiência neste tema têm grande dificuldade. GAO (2015) refere que as agências americanas USDA (U.S. Department of Agriculture) e Interior (Departamento of the Interior) têm identificado muitos locais contaminados e potencialmente contaminados, mas nenhuma delas tem um inventário completo. Assim, o inventário dos potenciais locais contaminados é uma tarefa muito importante a realizar, que vai permitir dar uma primeira ideia da situação existente em Portugal, uma vez que estudos mais aprofundados não são conhecidos. Reconhece-se que a abordagem e o estudo destas áreas degradadas exigem uma sistematização dos seus problemas para a melhor avaliação das condições e para a definição da(s) mais adequada(s) solução(ões) de reabilitação.

Figura 1 – Área industrial de Estarreja, em 2011.

Figura 2 – Antiga área industrial da desativada Siderurgia Nacional de Paio Pires, em 2010.

Figura 3 – Pormenor do local da antiga Siderurgia Nacional de Paio Pires, em 2010.

Figura 4 – Área industrial do Barreiro em 2010.

Figura 5 – Fotografia relativa à situação do antigo Parque Industrial do Barreiro

Figura 6 – Área mineira abandonada, com problemas de segurança pela existência de edifícios e outras estruturas industriais em ruína, acumulação de resíduos mineiros e contaminação de solos.

Figura 7 – Área mineira abandonada, com problemas de segurança pela existência de estruturas industriais contaminadas por radioatividade; tanques rotos, tubagens descontinuadas e interrompidas. A foto apresenta um tanque característico onde se prepara uma calda à base de sulfato de bário.

Figura 8 – Barragem de rejeitados adjacente ao rio que abastece a água à cidade de Lisboa.

               UMA ABORDAGEM ESTRATÉGICA

A abordagem das áreas degradadas e de locais contaminados tem obrigatoriamente que estar associada com o tipo de atividades nelas desenvolvidas. Este facto está relacionado com a constatação evidente de que as diferentes atividades e as variadas indústrias tendem a ter tipos de problemas específicos (Jorge, 1998).

De acordo com normas suecas (Swedish Environmental Protection Agency, 2002), e de acordo com a estrutura em geral adotada, a metodologia de abordagem estratégica de áreas degradadas/solos contaminados deve seguir alguns tópicos. Numa primeira fase deve tentar obter-se os dados geológicos para a realização de um modelo conceptual do local e de um estudo sobre as características do fundo regional da área, para evitar contaminações cruzadas e julgamentos errados. De seguida deve proceder-se à realização de quatro etapas principais:

1 – Identificação das áreas (inventário), escolha dos valores de referência/proteção, determinação dos níveis de contaminação, avaliação do potencial de migração dos contaminantes e definição dos perigos associados a cada uma dessas áreas.

2 – Definição dos objetivos a atingir para a requalificação/reabilitação de cada área.

3 – Delineação das medidas mais apropriadas para atingir os objetivos de requalificação/reabilitação.

4 – Produção de um relatório com as características de cada área e com as potenciais medidas de requalificação para atingir os objetivos delineados.

Em primeiro lugar é necessário proceder ao estabelecimento de um plano de amostragem e definir, mediante as condições locais e o seu historial, os compartimentos ambientais a amostrar e a avaliar. Deverá amostrar e identificar-se os diferentes contaminantes que possam estar presentes e determinar-se a sua quantificação. Os resultados das análises de amostras de solo (sedimentos) e/ou de águas pretendem fornecer uma primeira base para selecionar prioridades e para decisões que digam respeito a investigações adicionais ou remediação/tratamento, tendo presentes as características do meio.

Os Valores de referência/guia são obtidos a partir das legislações de proteção de solo adotadas. O grau de contaminação, ou seja, a quantidade de substâncias contaminantes presentes no local, para solo, sedimento e água subterrânea, comparando-a com os valores referência/guia, permite a seguinte classificação:

o          Concentração Ligeira  ˜  concentração dos valores guia

o          Concentração Moderada  =  valores das concentrações de até 3 vezes os valores guia

o          Concentração Grave =  valores das concentrações de 3 até 10 vezes os valores guia

o          Concentração Muito Grave =  valores das concentrações superiores 10 vezes os valores guia

O potencial de migração do contaminante é o quão rápido o contaminante pode sofrer dispersão no meio ou entre meios (compartimentos ambientais) em concentração e quantidades que impliquem efeitos maléficos a diferentes níveis

A avaliação de perigo é o valor de proteção. Esta questão está relacionada com a gravidade das consequências da contaminação respeitante à exposição humana e ao ambiente. Ela está relacionada com as propriedades nefastas dos contaminantes presentes no local. A classificação de perigo tem em conta a probabilidade de ocorrência de efeitos nefastos, enquanto o risco tem em conta o dano e a probabilidade de ocorrência de efeitos nefastos. As classes de perigo são associadas às áreas e variam progressivamente entre um perigo ligeiro a um perigo mais elevado (solos altamente contaminados). As abordagens de perigo incluem a contaminação de edifícios e de outro tipo de construções, solo, água subterrânea, água superficial e sedimentos. Os aterros e áreas de enchimento são considerados como solo. O objetivo é permitir uma avaliação compreensiva dos perigos associados com locais contaminados específicos, mesmo para aqueles em que a disponibilidade de dados seja limitada e não haja estudos de propagação realizados. Para o caso em que apenas se tem dados para definir a ocorrência de contaminação e níveis de contaminação, cada local pode ser dividido em subáreas, segundo pressupostos predefinidos, adaptados à classificação de perigo expresso em mapas que serão estabelecidos numa escala qualitativa por quatro classes:

•          Classe 1 – Perigo Elevado

•          Classe 2 – Perigo Moderado

•          Classe 3 – Perigo Baixo

•          Classe 4 – Perigo Nulo ou Não Aplicável

Só a partir destes primeiros passos será possível estabelecer um grau de perigo. Após isso é possível ter uma perceção do risco e passar, posteriormente, a uma avaliação do risco e definir medidas específicas de remediação e de redesenvolvimento de cada uma das áreas identificadas/caracterizadas. Diversas metodologias de caracterização das áreas deverão ser estabelecidas, assim como metodologias para a avaliação dos riscos. A forma como é atingido o balanço entre as componentes de risco, baseada na gestão do local, é diferente para diversificadas abordagens de tratamento. É necessário deixar bem claro que não existem soluções universais práticas. Cada solução tem as suas vantagens e desvantagens, que dependem de uma larga gama de fatores e de requisitos.

               CONCLUSÕES

Apesar da ausência e da premência de um diploma específico para a proteção do solo e sua requalificação, é possível realizar de um modo simples o estudo de locais potencialmente contaminados, numa perspetiva de perigo. As dificuldades residem no reconhecimento da importância e da obrigatoriedade de realização de estudos de locais potencialmente contaminados, com o objetivo de se atingir o patamar da perceção do risco, sem uma legislação para a proteção do solo. Haja vontade, bons especialistas e conveniente planeamento, com suporte financeiro, que facilmente se realiza, de forma conveniente, a abordagem desses locais.

REFERÊNCIAS

BOE (2005) - Real Decreto 9/2005, de 14 de enero, por el que se establece la relación de actividades potencialmente contaminantes del suelo y los criterios y estándares para la declaración de suelos contaminados. Boletin Oficial del Estado n.º15 - Agencia Estatal, Ministerio de la Presidencia, Govierno de España.

Borrego, C. (2010), A política ambiental de Portugal no espaço europeu: atitudes e desafios. In Europa: Novas Fronteiras Portugal: 25 anos de integração europeia. Centro de Informação Europeia Jacques Delors p. 177-182.

Dutch Soil Remediation Circular (2009) – Target Values and Intervention Values for Soil Remediation, Soil Remediation Circular.

Environmental Protection Act (2009) – Canadian Environmental Quality Criteria for Contaminated Sites in Ontario. Soil, Ground Water and Sediment Standards for Use Under Part XV.1 of the environmental Protection Act.

Freitas e Martins (2012) – A Europa e a política de ambiente em Portugal. DEBATER A EUROPA, Periódico do CIEDA e do CEIS20, em parceria com GPE e a RCE. N.º 7 de julho/dezembro 2012 – Semestral.

GAO (2015) – Agencies Should Take Steps to Improve Information on USDA’s and Interior’s Potentially Contaminated Sites. United States Government Accountability Office, Report GAO-15-35 Hazardous Waste. Washington, DC, January.

ITRC (2015) – Decision Making at Contaminated Sites: Issues and Options in Human Health Risk Assessment. RISK-3. Interstate technology and Regulatory Council, Risk Assessment Team. Washington, D.C., January.

Jorge, C. (1998) - Os Solos Contaminados - A Situação em Portugal (Estudo Preliminar). Rel. 73/98 – NP. Ministério do Equipamento, do Planeamento e a Administração o Território; Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Departamento de Geotecnia, Núcleo de Prospeção, Processos 054/17/12781 e 054/11/12755. Lisboa, março de 1998.

Jorge, C. (2008) – Requalificação de Áreas Degradadas em Portugal – Contaminação de Solos. Dossier Requalificação e Descontaminação de Solos. Revista Indústria e Ambiente, 54.

Jorge, C. (2014) – O Perigo da Degradação e Contaminação de Locais – A Situação em Portugal. Atas do XIV Congresso Nacional de Geotecnia. Universidade da Beira Interior, Covilhã, abril.

Ministry of Environment and Energy (1997) – Guideline for Use at Contaminated Sites in Ontario. Revised version, February.

Swedish Environmental Protection Agency (2002) – Methods for Inventories of Contanimated Sites – Environmental Quality Criteria and Guidance for Data Collection. Report 5053, Stockholm, Sw.

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