Entrevista a Paulo Ferrão

Numa entrevista centrada na economia circular, Paulo Ferrão realça a importância de apostar na produtividade dos recursos materiais, dado que esta prática apresenta, em Portugal, valores significativamente inferiores à média europeia. Encara a aposta da indústria na sustentabilidade não só como um investimento, mas como uma inevitabilidade a médio prazo.

A Comissão Europeia publicou o documento “Uma Europa eficiente em termos de recursos”, inserido na Estratégia Europa 2020. Que desafios se colocam a Portugal na transição da economia linear para a economia circular?

O uso mais eficiente de recursos coloca um conjunto de desafios que vão muito para além da promoção de uma economia circular. Aliás, embora apresente um apelo metafórico, a economia circular até dá a ideia de que temos vantagem em rodar aceleradamente os materiais pela economia, esquecendo que grande parte dos materiais que usamos se constituem como stock (toda a infraestrutura desde edifícios a automóveis e equipamentos em geral) e que temos vantagem em prolongar no seu uso antes de os “circularmos”, aí sim, como matérias primas e não como resíduos sem valor. O valor mais seguro será sempre o de apostar na produtividade dos recursos materiais.

Neste contexto, é essencial que consigamos, por um lado, afirmar um modelo de quantificação dos padrões de consumo de materiais por setor de atividade económica e perceber a interação entre setores e, por outro lado, desenhar planos e estratégias relevantes no âmbito do uso eficiente dos recursos.  É, assim, importante que os planos propostos para dinamizar a nossa economia possam ser enquadrados no contexto do seu impacto no consumo de materiais, considerando as diversas fases do ciclo dos materiais – consumo, produção e fecho dos ciclos.

A documentação da Europa refere também a necessidade de se criarem enquadramentos financeiros e contabilísticos para incentivar a eficiência e a circularidade dos recursos. Estes enquadramentos já existem? De que modo se podem consubstanciar?

Um dos principais enquadramentos consiste na capacidade de definir indicadores que permitam aferir o progresso. Neste contexto, em Portugal, o INE já implementou, nas contas nacionais, um sistema de contas de fluxos de materiais no âmbito das contas satélites do ambiente que me parece muito útil. Estas contas quantificam a evolução da extração interna, da importação e da exportação de materiais.

O indicador que sugiro possa ser utilizado faz uso da contabilização da entrada direta de materiais (EDM) que consiste na soma da extração de materiais em território nacional com a sua importação, ou seja, no total de materiais consumidos em Portugal e combina-o com o Produto Interno Bruto (PIB) para quantificar a “produtividade dos recursos materiais”.  Em 2014, último ano para o qual há informação disponível, verificou-se um consumo total de materiais de aproximadamente 189 milhões de toneladas, o que, para um PIB (Produto Interno Bruto) de 179 mil milhões de euros, resulta numa produtividade dos recursos naturais em Portugal de 0,95 €/kg, ou seja, cada kg de material consumido em Portugal contribui para a geração de 0,95€ de valor acrescentado. É importante salientar que este valor tem vindo a melhorar ligeiramente em Portugal, mas que ainda estamos muito longe da média Europeia que se aproxima dos 2 €/kg.

Um importante enquadramento legal para promover a produtividade dos recursos é a dinamização de um programa eficaz de compras públicas ecológicas. Durante a última década, o valor da contratação pública em toda a UE tem continuado a aumentar, aproximando-se dos 19% do PIB, valor de que Portugal também se aproxima. A promoção das compras públicas ecológicas tem um efeito dinamizador e estruturante no uso eficiente dos recursos, desde que aumente o âmbito de produtos e serviços considerados prioritários e a exigência dos seus critérios ambientais. Neste contexto, é importante que Portugal, no âmbito da transposição da diretiva europeia, desenvolva manuais específicos que detalhem as regras a aplicar, em especial no que respeita ao custo ao longo da vida e aos custos das externalidades ambientais, de modo a que possam ser consideradas em sede de qualificação dos candidatos e de avaliação das propostas de compras públicas. Esta legislação é essencial para disseminar boas práticas e dinamizar a sua adoção pelo setor empresarial.

A Plataforma Europeia para a Eficiência na Utilização dos Recursos (EREP) instou a UE a definir uma meta que assegure um aumento da produtividade dos recursos em mais de 30% até 2030. Como se pode materializar esta meta?

Esta estratégia deve ser alcançada conjugando três ações paralelas: 1) através da promoção da eficiência na utilização dos recursos em todas as cadeias de valor da indústria e dos serviços, ou seja, através da promoção da ecoeficiência; 2) através de programas nacionais e regionais de promoção de simbioses industriais, nos quais as matérias-primas de processos industriais de uns setores possam ser substituídas por resíduos de outras – aqui podemos incluir ecoparques industrias ou programas de simbioses industriais e 3) políticas de desenvolvimento económico baseadas no conhecimento da produtividade dos recursos em cada setor de atividade.

Em qualquer caso, os ganhos de produtividade associados à melhoria da produtividade dos recursos são significativos. Um trabalho em que estive recentemente envolvido mostra, por exemplo, que a indústria transformadora gasta 57% do seu volume de negócios em matérias-primas (contra 13% de gastos com o pessoal), enquanto a agricultura e atividades relacionadas gastam 42% (contra 14% de gastos com o pessoal) e o setor da energia (produção de eletricidade) gasta 37% (contra 3% de gastos com o pessoal). Há, assim, um potencial significativo na redução do consumo de matérias-primas, o qual se pode traduzir num aumento considerável do valor disponível nas empresas para o investimento, criação de emprego e expansão da produção, melhorias da renumeração dos trabalhadores e capitalização das empresas. Conclui-se, assim, que o uso eficiente dos recursos tem uma dimensão económica e social bastante prática, não se restringindo a uma perspetiva ambiental sobre a economia. Deve ser encarado como um fator de dinamização económica para o país, libertando recursos para o investimento e criação de emprego e permitindo, assim, inverter a tendência de diminuição do peso relativo de atividades como a agricultura, indústria ou construção.

As empresas portuguesas já estão sensibilizadas/capacitadas para procurarem soluções no domínio da economia circular?

Há já boas práticas em empresas de referência e creio que tenderão a aumentar. Por exemplo, recentemente a EDP trabalhou com a empresa 3Drivers para a definição de uma estratégia de Economia Circular no grupo EDP, baseada numa apropriação efetiva de informação de qualidade sobre os recursos que processa – que consome, que mantém em stock e que descarta, e sobre a sua partilha e análise a vários níveis da empresa e ao longo da sua cadeia de valor. É esta a única forma de ter sucesso na dinâmica da economia circular pois, por definição, esta está sempre para além da empresa e entende-se como resultado da gestão holística do sistema em que se processam os materiais envolvidos. Neste caso, a informação recolhida possibilitou a identificação de setores e projetos a serem desenvolvidos, por forma a consolidar o posicionamento competitivo da EDP na transformação do contexto económico da linearidade para a circularidade.

Podemos, assim, ter a convicção de que as empresas saberão avançar na direção da economia circular tanto por verem nisso um benefício económico e um imperativo ético como também em resposta a estímulos normativos que importa estabelecer.

Tem sido feita sensibilização ao nível dos consumidores?

A importância que os cidadãos dão às questões do ambiente e sustentabilidade tem sido alvo de vários estudos a nível comunitário, que têm vindo a demonstrar um aumento das preocupações ambientais ao longo do tempo. Os estudos do “Eurobarómetro” permitem concluir que, apesar de a maioria dos cidadãos portugueses se preocupar com o estado do ambiente, tal não se traduz em padrões de consumo mais sustentáveis, pelo menos nos parâmetros analisados. Os resultados sugerem, no entanto, que o investimento na sensibilização e na comunicação tem tido um impacte positivo na atitude dos cidadãos e por isso é uma prática que deve de ser incentivada.

A aposta na sustentabilidade dos processos é vista pela indústria nacional como um investimento ou uma despesa sem retorno?

A médio prazo não há alternativa. A aposta na sustentabilidade terá sempre de ser encarada como um investimento, mas os industriais têm de ser encorajados a não perder tempo a avançar nesta direção, como tenho vindo a discutir.

A indústria nacional tem aqui uma oportunidade para trabalhar com o sistema científico e tecnológico nacional, o qual se encontra preparado para dar uma boa resposta no desenvolvimento de produtos e processos inovadores em termos dos seus impactes ambientais, contribuindo assim para que a nossa indústria obtenha vantagens que assegurem a sua competitividade a nível internacional, o que é o mais importante dos seus desafios hoje e ...sempre.  Neste contexto, ciência e conhecimento serão a chave para a sustentabilidade ambiental, social e económica de Portugal.

Paulo Ferrão é doutorado em Engenharia Mecânica. É Professor Catedrático do Departamento de Engenharia Mecânica do IST. É co-fundador do Centro de Estudos em Inovação, Tecnologia e Políticas de Desenvolvimento, IN+. No âmbito da investigação científica, desenvolveu temas como Mecânica dos Fluidos e Combustão Experimental, Ecologia Industrial e Sistemas Energéticos e Processos Industriais. Preside, desde fevereiro de 2016, à Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

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