Mário Meireles: “Não dá para não ter trânsito quando o desenho da cidade convida a que se use o carro”
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Doutorado em Sustentabilidade do Ambiente Construído e Mestre em Engenharia Urbana – Cidades Sustentáveis, Mário Meireles tem pensado a mobilidade no concelho de Braga e na sua envolvente a partir da vertente académica, mas também pessoal, enquanto utilizador de bicicleta que se depara com as dificuldades desta opção modal numa cidade desenhada em função do automóvel. Liderou a Braga Ciclável, associação que tem procurado, com recurso a dados e propostas, apontar caminho para uma mobilidade que melhor sirva a população. Integra também uma lista independente que concorre a estas autárquicas, de cujo programa constam algumas das soluções que preconiza para melhorar a mobilidade na cidade. Trabalha nos Transportes Urbanos de Braga (TUB) desde 2013.
O seu livro “Mobilidade em Braga: Reflexões para um Futuro Melhor”, publicado este verão, serviu de mote a esta entrevista, onde escutámos propostas para alterar o paradigma da mobilidade não só em Braga, mas em qualquer cidade que pretenda devolver aos cidadãos a primazia do espaço público.
Entrevista por Cátia Vilaça
Este livro resulta de um conjunto de crónicas publicadas ao longo dos últimos 10 anos, maioritariamente na imprensa de Braga. O que te levou a avançar com esta compilação?
É uma questão de organização do pensamento, apesar de ser um livro com muita parte técnica. Contudo, tem também um pensamento sobre a forma como a política da mobilidade se deve organizar. Acho que a política da mobilidade, não só em Braga, mas em Portugal, está muito aquém daquilo que acontece em Espanha, por exemplo, já para não falar do centro da Europa.
Em Portugal continuamos a olhar para o carro como sendo a solução para tudo e depois vai-se fazendo alguma coisa para a ferrovia, vai-se fazendo alguma coisa para o transporte público, mas não há uma estratégia, não há um pensamento que resolva, efetivamente, os problemas e continuamos quase viciados na utilização do carro. Estamos com 70 % de utilização do carro, portanto já não é uma questão de serem muitos ou poucos carros, é que nenhuma cidade aguenta tanto carro. Estamos a falar em 150 milhões de deslocações por ano, neste momento, mais coisa menos coisa, em que 70 % dessas deslocações são de carro. Estamos a falar numa média de quatro deslocações por dia por pessoa. Não dá para não ter trânsito quando o desenho da cidade convida a que se use o carro.
Podemos dizer às pessoas que faz bem ao ambiente andar a pé, de transporte público, termos uma rede de autocarros elétricos, mas é perigoso andar a pé, e as estatísticas mostram que temos um atropelamento a cada três dias em Braga. E depois temos autocarros que não conseguem cumprir horários, não conseguem garantir as frequências que se propõem porque estão empatados no trânsito, produzido pelo uso excessivo do carro. Estamos a falar de, às vezes, termos pessoas a esperar 30 e 60 minutos por um autocarro. Não é serviço. E não é serviço porque a cidade, ou o concelho, ou o município, se quisermos, não oferece essas condições para que os TUB possam operar condignamente.
Para quem não está familiarizado com o traçado da cidade, Braga tem um conjunto de avenidas que acabam por funcionar como vias rápidas, apesar de não o deverem ser. São grandes retas, com separador central, com passagens desniveladas para peões, e com grande sinistralidade.
E, entretanto, a cidade foi crescendo à volta dessas avenidas, que faz com que hoje assumam uma centralidade que não tinham à época em que foram construídas. Estas opções configuram um modelo de mobilidade que, como é referido no livro, já tinha sido implementado e abandonado em cidades do norte e do centro de Europa. O que faz com que em Portugal se decida adotar soluções que já tinham sido testadas e já se tinha demonstrado que não funcionavam assim tão bem noutros sítios? O facto de termos também vivido uma ditadura e um período de privação material até tão tarde pode ter-nos levado a um desejo de progresso que desemboca nestas opções?
Não acho que a ditadura tenha qualquer tipo de influência. Quando estávamos em ditadura, António Maria Santos da Cunha, que era o nosso Presidente da Câmara, destruiu até uma igreja para fazer a Avenida da Liberdade, e rasgou grandes avenidas no meio de campos, para fazer o que hoje chamamos de Rodovia. Era o que se fazia em toda a Europa na altura. Durante os seus 37 anos de poder, Mesquita Machado [antigo Presidente da Câmara] fez muitas coisas como as que se faziam na Europa. Acontece é que na Europa, algures entre os anos 70 e 80, a população começou a revoltar-se exatamente pelos elevados níveis de sinistralidade, de poluição, etc., que não eram diferentes dos de cá. E nessas alturas os governos do resto da Europa começaram a mudar as suas políticas de mobilidade. Em Portugal, já dizem que o povo é sereno, que não há grande pressão pública para que os políticos façam algum tipo de mudança. Mesmo quando há, às vezes [os cidadãos] até são um pouco ignorados, e acho que isso é algo que começa agora a mudar. Mas efetivamente a população está desejosa de ver coisas que estão implementadas lá fora, porque percebem que lá fora funciona. Aqui há efetivamente uma falta de coragem política e isto é algo que não é só de Portugal.
No Livro Branco da Governação Europeia de 2000 já se falava de um gap muito grande entre as decisões políticas e as melhores práticas a nível da mobilidade. Há aqui um fosso muito grande e, portanto, é preciso coragem política. A partir dos anos 2000, não se implementaram coisas visionárias que poderiam ter-se implementado. Em Utrecht, abandonavam-se as grandes variantes com 12 vias, para fazer avenidas, com trams, etc. No início deste século, e até 2013, perdeu-se essa oportunidade. Agora tivemos 12 anos também que não trouxeram nada novo, apenas algumas implementações muito ténues, mas não foi a mudança que era precisa, como uma rede ciclável, como uma rede de transportes públicos, como uma rede de passeios em condições. E foi pena, porque ficámos ainda mais atrasados do que já estávamos.
E agora como revertemos isto? Em época de eleições autárquicas, que modelo de mobilidade é que os candidatos deviam estar a propor, que fosse promotor de qualidade de vida, para fazer face a indicadores alarmantes de sinistralidade e de poluição? Se mudar as políticas é o que falta para aumentar a qualidade de vida dos cidadãos, por que razão os candidatos autárquicos não estão tão disponíveis para isso?
Porque os políticos vivem de votos, e a partir do momento em que 70% das deslocações são feitas de carro… É preciso não usar de populismo e de alguma propaganda.
Nós temos, neste momento, dois grandes eixos [rodoviários] que formam quase uma cruz. A Rodovia, a Júlio Fragata e a Frei Bartolomeu dos Mártires formam uma cruz e é preciso urbanizar e acalmar todo esse eixo. O que se pretende é fazer uma nova variante que liga à zona do Eleclerc, antes da estação de caminhos de ferro, passa pelos parques industriais, pelo [centro comercial] Nova Arcada, etc., e vai ligar à reta da Póvoa de Lanhoso. Essa obra pode ser útil para escoar, efetivamente, os camiões dos parques industriais. Para as deslocações urbanas, não resolve. Em Braga, 2 % das deslocações não querem nada com o concelho. São pessoas que vêm de Vila Verde, da Póvoa de Lanhoso, e vão para o Porto ou para Famalicão. Pode parecer um número pequenino, mas em 150 milhões de deslocações ainda é considerável. Depois temos 19 % de pessoas que ou moram em Braga e vão para fora trabalhar, ou moram fora e vêm para Braga trabalhar. E este número é considerável, até porque muita gente saiu de Braga para ir procurar casas mais baratas fora.
E depois temos 78 % das deslocações dentro do concelho. E dentro destas, 53 % são feitas até 3km de carro. É aqui que temos de dar opções para as pessoas poderem ter qualidade de vida.
A rede de sensores espalhada pela cidade mostra-nos que, em determinadas alturas, há problemas com a poluição do ar, a nível do material particulado. Precisamos, efetivamente, de ter um plano de mobilidade na cidade. E há coisas que podem ser implementadas desde já. Por exemplo, elevar as passadeiras, reduzir as larguras onde é preciso que as velocidades sejam mais reduzidas; criar algumas ciclovias de rápida implementação e depois, com o financiamento, poder fazer coisas definitivas; garantir que o transporte público tem canais dedicados e que os carros cumprem as velocidades limitadas na cidade. Quando me dizem que a cidade é muito quente no verão, olhemos para Sevilha que, em 18 meses, conseguiu passar de 0 para 12 % de utilizadores da bicicleta, porque fez uma intervenção em 18 meses em que melhorou os passeios, melhorou as condições para andar de bicicleta, reduziu o acesso de carros ao centro da cidade e criou linhas de metro e de tram que ligaram a universidade e alguns pontos. Conseguiu reduzir em 12 % a utilização do carro. Quando me dizem que a cidade é muito chuvosa, eu falo de Donostia, onde chove mais e, ainda assim, tem 10% da população a andar de bicicleta, mais ou menos com a mesma população de Braga.
Há aqui um certo risco de que os nossos decisores, olhando para as questões climáticas, possam ser mais tentados a substituir o carro movido a combustível fóssil pelo carro elétrico, que não resolve os problemas todos, nem sequer a nível ambiental?
Não sei se aí não há o lobby a funcionar. Mas eu já há muito tempo deixei de olhar apenas para as soluções da mobilidade sustentável como algo para combater as questões ambientais, porque não são apenas isso. Prefiro ter mais espaço público livre, para poder usufruí-lo, do que ter um carro estacionado 23 horas por dia, a ocupar espaço público, a privatizar aquele espaço. Um carro a diesel ou um carro elétrico ocupa na mesma hora o mesmo espaço público. Se desenhássemos a nossa casa como desenhamos o espaço público atualmente, se calhar 80 % do espaço da casa era para o carro, para a garagem do carro. Estamos a fazer ao contrário no espaço público, que é um espaço onde todos vivemos, onde passamos imenso tempo. A poluição vai continuar, mesmo com carros elétricos, porque eles levantam partículas com o desgaste dos pneus, dos travões, e levantam as partículas que já estão no chão, porque o material particulado não é apenas os gases produzidos pela combustão, mas pequenas partículas do plástico e de outras origens que estão espalhadas no terreno e, portanto, a questão do impacto ambiental é fundamental. Agora, diria que não é a condição única e necessária para se fazer a transferência para uma mobilidade mais sustentável. Precisamos de olhar para todos os outros modos de transporte.
Há, efetivamente, essa tendência de eletrificar a frota, mas se calhar devíamos ter uma frota de bicicletas elétricas disponível para as pessoas que trabalham no município se poderem deslocar, ou investir em critérios que melhorassem a logística urbana ou que levassem a que quem faz a logística urbana optasse por veículos elétricos ou até mesmo bicicletas de carga elétrica para fazerem distribuição no centro. Para isso, é preciso criar os incentivos para que a logística não fique mais cara e mais demorada e possa ser feita de outra maneira.
No livro também aborda a ausência de ligação ferroviária direta para Barcelos, para Guimarães e Vila Verde, sendo que estas cidades já manifestaram interesse que essa ligação existisse. Para além das vantagens ambientais, do ponto de vista económico, que vantagens teria esta ligação?
Teria todas as vantagens. Neste momento, quem vem de Vila Verde para Braga não tem outra opção que não seja vir de carro. Não há ferrovia para Vila Verde, nem existe linha. Se quisermos ir até Guimarães ou vir de Guimarães, demoramos duas horas. Temos de mudar em Lousado e esperar pelo comboio que vem do Porto. Para ir a Barcelos, temos de mudar em Nine, o que demora cerca de hora e meia, quando de carro demora 15 minutos. A vantagem é económica porque se o comboio for competitivo, as pessoas deixam de levar o carro, deixam de gastar gasóleo, deixam de ter preocupações com o trânsito, deixam de poder ter um sinistro, deixam de ter de procurar estacionamento. Há imensas vantagens. Aquilo que politicamente não está a ser discutido, por razões que a razão desconhece, é a localização da estação de alta velocidade em Braga. Isto tem a ver com um estudo feito há muito tempo, segundo o qual a ligação Porto-Vigo desviava para Braga porque incrementava em 30 % a atratividade do comboio de alta velocidade. Não há nenhum problema em ter estação intermédia.
O país pioneiro, o Japão, tem estações de 40 em 40 km, em alguns casos. O que se faz nesses sítios é um bypass, portanto os comboios diretos não são interferidos. A estação em Braga estaria prevista mais ou menos para Semelhe, uma localização que não é central, nem sequer tangencial à cidade. São as chamadas estações beterraba. Em França foram instaladas estações em campos de beterraba com a desculpa de que ia nascer uma cidade à volta e não aconteceu nada. E quando todos os especialistas dizem que é um erro, não se consegue perceber porque é que não há da parte do Presidente da Câmara de Braga uma decisão política de não fazer a estação ali. Não encontrei ainda nenhum especialista da área que dissesse publicamente ou pessoalmente que a estação em Semelhe é a localização certa. O que dizem é que a localização ideal seria Maximinos, na estação que agora é terminal. No limite, seria mais ou menos em Ferreiros, porque a linha de alta velocidade já lá passa, cruza em túnel, um pouco como aquilo que acontece em Gaia. Podia fazer-se uma estação enterrada aí, e isto seria mais vantajoso porque teria concordância com a linha atual. Portanto, permitia a quem vem de TGV mudar para a linha atual ou quem vem do urbano mudar para a TGV. Para além disso, permitia depois estender essa linha até Guimarães, Vila Verde, Barcelos, etc. Portanto, é preciso apostar na ferrovia em Portugal, é preciso apostar na ferrovia no Minho e é preciso ter visão e uma voz ativa aqui. Quando dizem também que temos pouca população a morar em Vila Verde, ou em Amares, ou na Póvoa [de Lanhoso], ou em Guimarães, eu acho que essas pessoas deviam ir à Suíça.
Este traçado do BRT que foi conhecido até agora, que liga a estação de caminho de ferro ao hospital, pode ser um bom primeiro passo? Qual seria o modelo ideal para implementar o BRT em Braga? Poderia servir mais zonas de concelho e até eventualmente ultrapassar as fronteiras concelhias?
Acho que para soluções interconcelhias temos de apostar na ferrovia. No programa autárquico em que colaborei, prevemos um modelo híbrido, ou seja, é um veículo que tanto pode operar na ferrovia pesada como na ferrovia ligeira.
E Braga já teve elétrico
Nesse caso era um elétrico que também entrava na linha do comboio. Como a CP não tem o monopólio da utilização da via, que já foi aberta por imposição da Europa, qualquer operador pode ir lá operar, e Braga pode ter um operador interno que possa operar nessa linha. Isto iria resolver o problema do eixo de Arentim, Cunha, Ruílhe, Tadim, Mazagão, Aveleda e Ferreiros. De Arentim a Braga são 14 minutos, mas o comboio mas só passa de hora em hora. Se tivéssemos uma rede que fosse até Nine, por exemplo e depois em Ferreiros entrasse na Nacional e fosse até São Mamede D’Este e pudesse continuar até à Póvoa de Lanhoso, se calhar tínhamos uma rede de elétricos de 5 em 5 minutos a funcionar na cidade e a ligar de um lado ao outro com mais frequência do que a que temos agora. A mesma coisa no sentido norte - sul. Se me perguntarem se são investimentos avultados, são, mas Lisboa tem mil milhões para a linha circular [de metro]. Com mil milhões faz-se muita coisa aqui a nível de superfície. O grande problema é que nunca há projetos. Em Braga nunca há projetos fechados para submeter a concurso ou para dizer ao Governo que temos um projeto e precisamos do dinheiro.
O BRT surge em 2012 como promessa eleitoral de Ricardo Rio [presidente em final de mandato] e depois em 2013, mais profundamente, num período em que estávamos na troika. O PDM foi aprovado em 2015 tendo subjacente a ideia de que a cidade não ia crescer, não se podia construir, e era preciso já nessa altura uma solução de transporte público de massas que fosse barata e rápida de implementar, e o BRT é isso, barato e rápido de implementar, sendo que sempre foi dito que, assim que fosse possível, o BRT teria de escalar para outra solução mais ferroviária e que desse outro tipo de respostas. Passaram 12 anos e aquilo que devia ser implementado em seis não foi. O que estava previsto inicialmente eram duas linhas este - oeste e duas outras linhas norte - sul. A meio destes três mandatos houve uma mudança da decisão política do traçado, e aí podem dizer que foi com base em questões técnicas, mas o traçado do transporte público é sempre uma decisão política. Neste momento há uma decisão política de um novo projeto com quatro linhas, que depois eram duas, mas depois disseram que não conseguiram negociar com a IP, portanto isso também é revelador da falta de capacidade de negociação. Lançaram uma única linha que nem sabem muito bem por onde passa na zona da universidade porque a universidade não quer que passe por dentro, quer que passe por fora. Não sei exatamente o que se vai lançar porque alguém que recebe um caderno de encargos que diz que ali “nem é carne nem é peixe”, como vai fazer? Passar por dentro da universidade tem um valor, passar por fora e rebentar com o monte tem outro. Vão ser trabalhos a mais? Não sei.
Podem é, neste projeto, prever já a introdução de carris, e não se perde tudo, garante-se que o futuro não fica comprometido e que a seguir se pode escalar em quatro anos para ter esta linha pelo menos de Ferreiros até São Pedro e São Mamede D’Este em tram, enquanto se negoceia depois para entrar na linha da IP e ir até Arentim. Mas é possível fazer isto em quatro anos e acho que é uma solução mais vantajosa. Arrojada, sim, mas é aquilo de que neste momento o concelho precisa para resolver uma parte do problema. Não acho que este BRT que está agora na calha seja a solução, e tenho manifestado muita preocupação com os prazos, porque estamos em outubro e o BRT tem de estar pronto em julho de 2026, senão perde-se o financiamento e tem de se devolver o dinheiro. Não me parece possível que de outubro a julho alguma empresa consiga conceber e depois realizar a obra.
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