O ADN dos fenómenos extremos hidrológicos em Portugal

  • 30 junho 2018, sábado
  • Água

A expressão “fenómenos extremos” é daquelas que se entranhou sem se estranhar na conversação diária dos portugueses. Toda a situação “fora do normal” é, agora, extrema: “possibilidade de fenómenos extremos”, nos frequentes alertas da proteção civil; “fenómeno de vento extremo” ou “eventos de frio extremo”, nos avisos da Meteorologia; “precariedade laboral extrema”, nos comunicados dos sindicatos; até “situação extrema” no futebol. O incremento da utilização dessa expressão no discurso dos portugueses teve um nível de adesão equiparável ao “não faz parte do nosso ADN” (muito utilizada, não por biólogos, mas por treinadores de futebol).

No rescaldo das cheias de 1 de novembro de 2015 no Algarve, em Albufeira, quando interrogado sobre se uma passagem hidráulica estaria bem dimensionada dada a submersão da mesma durante a cheia, um técnico da APTSPC certificava a obra dizendo que “em 99% das situações, a estrutura funcionou sem problemas”. Este é um engano infelizmente comum, pois subentende a admissão média de falhas na evacuação do escoamento sob a estrutura hidráulica em 1% dos dias nos anos de funcionamento. Ora, para o correto dimensionamento de uma estrutura, o cálculo do caudal de projeto deverá recair apenas sobre uma amostra estatística de caudais composta por um único valor (máximo) de caudal para cada ano. Com este método de amostragem de extremos (ou outro igualmente válido, tal como o que considera um número restrito de máximos acima de um limiar de alerta), a uma falha de 1% corresponde (em média) uma insuficiência de drenagem a cada 100 anos e não os cerca de três dias e meio de insuficiência média em cada ano.

Ao contrário do que possa parecer, esta preocupação com o correto enquadramento estatístico dos fenómenos extremos não é um preciosismo, já que a desvirtuação do seu significado, banalizando o extremismo das ocorrências, desresponsabiliza maus procedimentos, quer de dimensionamento quer de gestão, tão conformes ao fatalismo e resignação portugueses (p.ex., “a ponte caiu na última cheia mas, face a um fenómeno tão extremo, nada havia a fazer” - Atenção: uma frase semelhante já foi proferida por um secretário de estado do ambiente!). Se lhe juntarmos o chavão de que os fenómenos extremos são agora cada vez mais frequentes devido às alterações climáticas, o celibato da culpa num acidente é total.

Em termos da gestão do risco dos fenómenos extremos enquadráveis nas geociências (cheias, secas, sismos, tsunamis, tempestades marítimas) a correta caracterização estatística da ocorrência dos fenómenos é fundamental. E aqui está o ADN da boa gestão do risco destes fenómenos: assegurar sistemas de monitorização dos fenómenos que recolham, armazenem e disponibilizem, para qualquer cidadão, os dados da vigilância das ocorrências. O desconhecimento das magnitudes, intensidades, abrangências espaciais e durações dos fenómenos torna a gestão do risco da sua ocorrência e das consequências numa irresponsabilidade perigosa.

Rui Rodrigues

Investigador no Núcleo de Recursos Hídricos e Estruturas Hidráulicas, LNEC

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