Entrevista a José Lima Santos

Na sua opinião, quais as questões mais relevantes para uma agricultura sustentável e amiga do ambiente e, ainda assim, competitiva?

Promover, ao mesmo tempo, a sustentabilidade ambiental e a competitividade da agricultura para alimentar 9 a 10 mil milhões de pessoas com padrões de consumo cada vez mais exigentes é um dos maiores desafios com que a humanidade se defrontará globalmente até 2050. Este desafio consta de todos os grandes roteiros de política internacionais, nomeadamente dos recém-adotados Objetivos de Desenvolvimento Sustentável.

Vencer o desafio da alimentação implica não só produzir mais, mas também alterar as dietas e garantir o acesso das pessoas aos alimentos. A intensificação agrícola das últimas décadas reduziu o risco global de insuficiência alimentar, e, por isso, a insegurança alimentar do mundo de hoje resulta mais da desigualdade na repartição do rendimento do que da insuficiência global do nosso potencial tecnológico de produção de alimentos. Assim, a grande maioria das centenas de milhões de pessoas em situação de insegurança alimentar são hoje produtores de alimentos pobres nos países em vias de desenvolvimento. É nestes que devemos focar o esforço de aumento de produção, para que seja possível, ao mesmo tempo, produzir mais e gerar mais rendimento onde este é necessário para garantir o acesso aos alimentos. É ainda necessário reduzir o desperdício alimentar, para impedir que recursos naturais escassos sejam usados para produzir alimentos que se perdem no campo ou nos transportes, ou que acabam no caixote do lixo. Finalmente, mesmo que estes desafios sejam vencidos, será também provavelmente necessário aumentar a produção global de alimentos, e fazê-lo de um modo sustentável.

Conseguir este aumento de produção por simples expansão da área de terras cultivadas teria custos inaceitáveis em termos de desflorestação tropical, perda de biodiversidade, destruição de serviços cruciais dos ecossistemas e emissões de CO2. Qualquer solução aceitável passará sempre pela intensificação agrícola, ou seja, pelo aumento da produção agrícola por hectare nas terras já atualmente cultivadas.

A intensificação agrícola do passado poupou muita terra para a biodiversidade e para os serviços de ecossistemas. Sem ela, estaríamos bem pior em matéria de segurança alimentar, biodiversidade e serviços dos ecossistemas. No entanto, ela foi baseada no uso crescente de inputs industriais (adubos químicos de síntese, pesticidas, energia e água de rega) utilizados para transformar o meio agronómico e torná-lo mais favorável ao crescimento de meia dúzia de variedades de plantas altamente produtivas, mas que requerem agroecossistemas muito artificializados.

Esta intensificação baseada em inputs alcançou o desejado aumento da produtividade da terra cultivada, mas à custa de um uso cada vez mais ineficiente destes inputs, de que resultaram perdas excessivas dos mesmos, as quais, por sua vez, ampliaram emissões poluentes de nitratos, fosfatos, gases com efeitos de estufa e pesticidas persistentes, e aceleraram o esgotamento de recursos naturais como água, solo, biodiversidade, energia e múltiplos serviços de ecossistemas.

Defrontamo-nos hoje com o dilema da intensificação. Por um lado, temos de produzir mais por hectare de superfície cultivada, ou seja, intensificar. Por outro, a forma como intensificámos no passado, com base no acréscimo do uso de inputs, não é mais possível e/ou desejável, porque se defronta hoje com claros limites, dos quais destacarei cinco.

Primeiro, é necessário reduzir a pegada ambiental da intensificação baseada em inputs.

Segundo, o melhoramento genético das plantas utilizado no passado parece estar a encontrar sérios limites no desejado aumento da resposta produtiva das plantas aos fertilizantes e pesticidas.

Terceiro, o esgotamento de recursos hídricos afeta hoje numerosas áreas agrícolas, particularmente nas regiões mais povoadas do planeta, como a China e a Índia.

Quarto, os impactes esperados das alterações climáticas na produtividade das culturas agrícolas e nos recursos hídricos, sobretudo em zonas que têm já hoje uma reduzida produtividade, como a África Subsaariana ou a bacia mediterrânica, lançam dúvidas sobre a nossa capacidade agrícola global no futuro.

Quinto, a dependência de energia fóssil barata induzida pelo modelo de intensificação baseada em inputs originou uma grande vulnerabilidade da produção agrícola face ao preço da energia.

Que tecnologias é necessário introduzir para tornar a nossa agricultura mais competitiva?

Os desafios da competitividade e da sustentabilidade requerem uma transição do paradigma químico-mecânico, que promoveu a intensificação baseada em inputs do passado, para um novo paradigma tecnológico, a que alguns hoje chamam intensificação sustentável.

Para ultrapassar o dilema da intensificação identificado na resposta à primeira pergunta temos de encontrar formas de aumentar a produtividade da terra (a parte boa da intensificação) sem aumentar o uso de inputs (a parte má). Isto requer ganhos muito significativos na eficiência de utilização destes inputs: “more crop per drop”.

No âmbito do modelo químico-mecânico, os aumentos de produção por hectare foram geralmente conseguidos à custa de aumentos do nível de inputs por hectare, de que resultou uma diversidade de problemas de insustentabilidade ambiental. Resultaram também diversos problemas de competitividade: custos mais elevados, menor qualidade e segurança dos alimentos, e maior vulnerabilidade económica da agricultura neste fim da era da energia barata.

Deste modo, o novo modelo tecnológico centra-se em desligar, tanto quanto possível, o aumento da produção por hectare do nível de utilização de inputs industriais. Esta direção de mudança permitir-nos-á criar uma agricultura ao mesmo tempo mais competitiva, mais amiga do ambiente e mais resiliente face à escassez crescente de água e à subida do preço da energia.

Podemos hoje antever pelo menos duas vias estratégicas para esta transição de modelo tecnológico, que nos podem conduzir ao desligamento do crescimento da produção por hectare face aos níveis de utilização de inputs. A primeira baseia-se no aumento da eficiência na utilização dos inputs por aplicação dos mesmos de um modo mais preciso, no tempo e no espaço – o que é referido como agricultura de precisão, num sentido muito genérico do termo (porque inclui também novos métodos de rega, bem como numerosas outras tecnologias, tal como a proteção integrada e a utilização sustentável de pesticidas).

A segunda via baseia-se na cópia e utilização de processos ecológicos – predação, parasitismo e doença, fixação simbiótica de azoto, micorrizas, combinações de culturas permanentes e anuais, como nos sistemas agroflorestais – para substituir inputs comprados de origem industrial (pesticidas, fertilizantes e energia).

A primeira via (maior eficiência no uso de inputs por aplicação mais precisa ou criteriosa) depende sobretudo das novas tecnologias da informação, incluindo os sistemas de informação geográfica (SIG), bem como as tecnologias de sensores e de deteção remota. A segunda via (substituição de inputs industriais por processos ecológicos) assenta num melhor conhecimento da forma como os agroecossistemas funcionam.

A intensificação de base ecológica (segunda via) depende de uma provisão reforçada e resiliente de serviços de polinização, controlo biótico de pragas e doenças, fertilidade do solo e outros serviços de ecossistemas. Depende portanto de ecossistemas saudáveis e funcionais, em que se apoia para reduzir a atual dependência da produção de alimentos face a inputs industriais ricos em energia, cujo preço está a aumentar. A proteção dos ecossistemas justifica-se aqui não pelo seu valor intrínseco, mas sim pelo reconhecimento da nossa dependência face aos mesmos para assegurar a produção de alimentos numa nova era de energia mais cara em que é necessário reforçar a sustentabilidade ambiental. Deste modo, no âmbito da intensificação sustentável, e ao contrário do que se passava no modelo químico-mecânico, existe uma grande consistência entre os objetivos de competitividade e de sustentabilidade ambiental.

A autossuficiência agroalimentar deve ser um objetivo para Portugal?

Num sentido restrito, a autossuficiência agroalimentar significa produzir, a nível nacional, todos os alimentos de que necessitamos nas quantidades necessárias. Este objetivo choca frontalmente com duas poderosas lógicas, uma económica e outra ecológica: a lógica da especialização dos diversos países de acordo com as suas vantagens comparativas; e a lógica da sustentabilidade ambiental, respetivamente.

Existe um exemplo muito claro destes choques no caso da agricultura portuguesa: o da insistência histórica em tentar assegurar a nossa autossuficiência em cereais, sobretudo trigo. Este objetivo foi historicamente prosseguido em quadros muito distintos: foi, por exemplo, favorecido pelo Estado Novo, através da famosa Campanha do Trigo; foi também apoiado no quadro da nossa integração na União Europeia, em que foi prevista uma ajuda aos cereais ligada à produção (a chamada “cofinanciada”). Esta insistência vem desde tentativas, muito anteriores, de descobrir novas terras que pudessem complementar a nossa débil produção cerealífera. Consoante os contextos, esta insistência teve a ver com objetivos claros de independência nacional, e/ou com interesses dos produtores nacionais de cereais. No entanto, as reduzidas aptidões do território nacional para as produções de cereais (sobretudo trigo) traduziram-se no facto de apenas em poucos anos o objetivo ter sido conseguido (alguns anos durante a Campanha do Trigo) e, mesmo assim, apenas à custa de uma destruição ambiental (erosão do solo) que revelou que este sucesso seria sempre temporário e insustentável. Este exemplo mostra também que os objetivos de segurança do abastecimento alimentar dependem também muito da proteção dos recursos de que depende a produção, neste caso do uso sustentável do recurso solo fértil.

Com o recente desligamento total das ajudas da Política Agrícola Comum (PAC) face às produções escolhidas pelos agricultores, a cultura do trigo caiu a níveis praticamente residuais. No mesmo período, o setor agrícola nacional progrediu na via da especialização relativa em produções em que o país apresenta maiores vantagens comparativas, tais como o azeite, as hortofrutícolas e a vinha. Nestes setores, o país tem um maior potencial para gerar valor acrescentado e emprego, bem como para superar a autossuficiência e assim contribuir para equilibrar a balança comercial.

O potencial da agricultura portuguesa reside essencialmente no mercado interno ou na exportação? Ou depende do setor?

A argumentação desenvolvida na resposta à pergunta anterior coloca o potencial da agricultura portuguesa mais nas exportações, no equilíbrio das trocas comerciais e na geração de valor acrescentado e emprego nacionais do que no objetivo de produzir para o mercado interno.

No entanto, o mercado interno é ainda o objetivo natural em algumas produções em que temos vantagens comparativas mas não atingimos ainda graus de auto-aprovisionamento aceitáveis (como algumas frutas).

Além disso, acredito que, em alguns casos, exista um potencial não negligenciável de aumento do grau de auto-aprovisionamento do mercado interno, numa base sustentável, mesmo em culturas em que as nossas vantagens comparativas são fracas. No caso dos cereais, a utilização de técnicas de sementeira direta, a uma escala alargada, e a prática de rotações mais equilibradas poderão vir a permitir este tipo de desenvolvimento desejável em solos em que as alternativas produtivas são escassas. Mas daqui a pensar que a utopia do autoabastecimento em trigo se poderá tornar uma realidade vai uma grande distância.

A produção para o mercado interno pode ainda ser vista como uma via eficaz para promover a agricultura sustentável e reduzir as “food miles” percorridas pelos alimentos, por exemplo no quadro da promoção de cadeias curtas em que a produção sustentável de origem local é preferida pelos consumidores, e/ou discriminada positivamente ao nível das compras públicas de alimentos, como vai já acontecendo em diversos países europeus.   

De que forma as alterações climáticas vão afetar a produção agrícola em Portugal?

O mais recente relatório do Painel Intergovernamental para as Alterações Climáticas (IPCC) apresenta dois resultados decisivos para compreender a extensão dos efeitos das alterações climáticas, nomeadamente em Portugal.

Em primeiro lugar, uma análise de numerosos estudos sobre os efeitos das alterações climáticas na produtividade das mais diversas culturas em diferentes cenários climáticos e usando modelos muito diferentes demonstrou claramente que, embora seja verdade que, numa primeira fase, em alguns países e nalgumas culturas, os efeitos sejam positivos, a partir de 2050, os efeitos negativos predominam claramente. Este resultado é muito crítico face à perspetiva que afirmava que o aumento de produtividade nalguns contextos geográficos (por exemplo, norte da Europa) poderia compensar a perda de produtividade noutros contextos (países mediterrânicos, por exemplo), sem que fosse afetada a nossa capacidade produtiva global.

Em segundo lugar, e independentemente dos modelos climáticos utilizados, começa a haver um forte consenso relativamente à existência de áreas do globo que serão fortemente afetadas pela redução de precipitação. Estas áreas centram-se nas zonas do mundo onde ocorrem climas mediterrânicos e nalgumas zonas tropicais secas e semi-áridas. Este será provavelmente um dos principais aspetos negativos a ter em conta no caso de Portugal, tanto mais que a redução da precipitação é já uma tendência observada nas últimas décadas e não apenas um cenário futuro.

Além disso, há que referir que um dos principais aspetos positivos – a redução da época de geadas – se concentrará em regiões agricolamente mais produtivas, enquanto que a redução de precipitação e o aumento da temperatura tenderá a ocorrer em zonas agricolamente mais marginais, acentuando-se assim a dualidade, já hoje muito marcada em Portugal, entre zonas de agricultura rica e pobre.

Outro dos impactos a ter em conta é o da melhoria das condições de produção no norte da Europa para produções em que temos vantagens comparativas, como é o caso da vinha. Aqui o efeito das alterações climáticas chegar-nos-á através de mais competição no mercado.

Num cenário de escassez de recursos hídricos, o que deve ser feito para manter (ou aumentar) a disponibilidade de água para rega, de forma sustentável?

Penso que teremos de nos concentrar mais na eficiência da utilização da água do que em aumentar a capacidade instalada para oferecer mais água. No que se refere à eficiência da utilização da água, e para além da promoção de métodos de rega mais eficientes e da redução das perdas de água nos sistemas de rega, é essencial conhecer melhor os mecanismos que as plantas usam para lidar com o stress hídrico e, sobretudo, converter este conhecimento em tecnologia utilizável, quer ao nível da planta, quer ao nível das técnicas culturais e do design dos agro-ecossistemas.

Ao nível da disponibilidade de água, penso ser importante pensar em disponibilidade mais descentralizada, não só para o regadio mas também, e sobretudo, para assegurar outros usos da água (por exemplo, para os animais ou para garantir jovens plantações florestais) em contextos de escassez. Além disso, temos de assegurar novas formas de reter água para além de barragens, apostando na capacidade dos ecossistemas para o fazerem. Uma importante via neste sentido seria desenvolver e aplicar uma estratégia concertada de aumento generalizado do teor de matéria orgânica dos nossos solos.

José Lima Santos é licenciado em Agronomia (ramo de Economia Agrária e Sociologia Rural) pelo Instituto Superior de Agronomia (ISA) e doutorado pela Universidade de Newcastle, no Reino Unido. Foi assessor da Direção Geral do Desenvolvimento Rural para a programação das medidas agro-ambientais para o período 2000-2006. Atualmente, leciona Economia do Ambiente, Economia e Política Ambiental e dos Recursos Naturais, Política Ambiental e Sociologia e Direito do Ambiente no ISA.

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